Everton: a ligação de local do novo estádio com o tráfico e a exploração de escravos no Brasil
📷Novo Estádio do Everton © Reprodução |
A Inglaterra teve muito envolvimento no comércio de escravos, e Liverpool era um dos maiores pontos do tráfico na Europa, principalmente em ligações com o Caribe e os Estados Unidos. O que é pouco conhecida neste tema é a ligação da cidade com o Brasil, onde o comércio ilegal de escravos continuou ativo até 1850.
O local na beira do Rio Mersey, onde começou há poucos dias a obra do imponente novo estádio do Everton, tem muito a ver com esta história. John Bramley-Moore, comerciante e político de Liverpool que deu nome às docas que estão no lugar em que agora há a construção, lucrou diretamente com a exploração de pessoas escravizadas no Brasil mesmo após da abolição do tráfico de escravos para as colônias britânicas, em 1807, e da escravidão no império britânico, em 1833.
Joe Mulhern, historiador da Durham University, tem pesquisado as ligações da cidade com a escravidão no Brasil e conta que Bramley-Moore esteve no Rio de Janeiro. Lá, possuía escravos em seus estabelecimentos e em sua chácara no Alto da Boa Vista com plantações de café. O comerciante usou o dinheiro ligado à exploração de pessoas escravizadas no Brasil para bancar a carreira política, foi vereador, prefeito da cidade e membro do parlamento em Westminster.
“Moore foi um dos muitos comerciantes que buscaram fortuna em um mercado que havia sido recentemente aberto ao comércio britânico. Foi na década após a Independência do Brasil, em 1822, que a empresa John Moore & Co. começou a consolidar sua posição como uma das principais casas de importação e exportação do Rio de Janeiro, lucrando ao operar em uma economia e uma sociedade onde a escravidão predominava”, afirmou Mulhem em entrevista à ESPN Brasil.
“O homem que dá nome ao cais em Liverpool também foi cúmplice da violência cometida no tráfico transatlântico de africanos por meio do papel de sua empresa no fornecimento e financiamento do comércio de escravos para o Brasil. Apesar de o governo brasileiro ter proibido a importação de escravos a partir de 1831, um extenso comércio ilegal persistiu até meados daquele século, sendo responsável por colocar cerca de 750 mil africanos em cativeiro”, acrescentou o historiador.
História apagada. Everton não fará o mesmo
Depois da 'passagem' pelo Rio de Janeiro, a empresa de Moore baseada em Liverpool continuou financiando o tráfico ao Brasil. Um de seus navios, o Guiana, foi interceptado em 1840 pela marinha britânica e estava sendo usado por traficantes de escravos.
Possivelmente por conta de sua influência política, as conexões de Bramley-Moore com a escravidão foram apagadas de seu legado. Documentos na Inglaterra raramente mencionam a escravidão. É o caso do Dicionário Oxford da Biografia Nacional.
Na verdade, na Inglaterra, em geral, a conexão com escravidão era frequentemente ignorada ou ocultada. Porém, nos últimos anos, a importância de se revisar e atualizar a história tem ganhado força.
Como o novo estádio será nas docas Bramley-Moore, muitos têm se referido ao projeto com o nome do local, mas o estádio não terá este nome. Como revelou esta semana o site Liverpool World, o clube deixou claro que procura negociar o nome da arena com um patrocinador para receber por naming rights.
E a ESPN Brasil apurou que o projeto não vai ignorar a história do lugar e varrê-la para baixo do estádio. Muito pelo contrário.
O Everton está investindo 50 milhões de libras (R$ 369,3 milhões, pelo câmbio atual) para preservar o patrimônio histórico. Uma trilha (heritage trail) vai contar a história das docas, e o clube garante que vai incluir a história de Bramley-Moore: tanto a sua relevância para a cidade como sua ligação com o tráfico de escravos.
Uma campanha de historiadores e organizações de preservação do patrimônio histórico, além da comunidade local, fez com que a Câmara Municipal de Liverpool assumisse o compromisso de instalar placas que contextualizem os laços com a escravidão em diversas ruas que levam nomes de traficantes de escravos.
É mais ou menos a linha que o Everton seguirá. O clube está ciente da conexão com o trafico de escravos e promete informar com fatos históricos atualizados, mas sem julgar o legado de Bramley-Moore.
O novo estádio para 52.888 torcedores custará 500 milhões de libras (R$ 3,6 bilhões, pelo câmbio atual) e deve ser inaugurado em 2024.
A UNESCO instituiu em 1998, por meio da resolução 29 C/40, 23 de agosto como o Dia Internacional de Lembrança do Tráfico de Escravos e sua Abolição. A escolha se deu em referência à noite de 22 para 23 de agosto de 1791, quando escravos de São Domingos se revoltaram contra o sistema de escravidão vigente e deram início ao que culminou com a independência do Haiti.
Liverpool celebra a data desde 23 de agosto de 1999, reconhecendo seu papel como uma capital do tráfico transatlântico de escravos. No dia 23 de Agosto de 2007, a cidade inaugurou o Museu Internacional da Escravidão na famosa Royal Albert Dock contando a história e analisando o legado da escravidão.
Joe Mulhern publicará em 2023, pela editora Anthem Press, um livro sobre a conexão britânica com a escravidão no Brasil, incluindo a história de Bramley-Moore. O nome em inglês será 'British Entanglement with Brazilian Slavery: Masters in Another Empire, 1822-1888', em português, em tradução literal, seria algo como 'O Emaranhamento Britânico com a Escravidão Brasileira: Mestres em outro Império, 1822-1888'.
Por João Castelo-Branco, de Londres (Inglaterra)
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