Série Escravidão: O Estado, a Igreja Católica e a Escravidão no Brasil
📷Praça de São Pedro © Vaticano |
Este é o quarto artigo da Série Escravidão. Recomendamos a leitura dos artigos anteriores:
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo principal a caracterização da participação da Igreja Católica no fenômeno da escravidão negra africana na América portuguesa por aproximadamente três séculos e meio, tendo inicio no século XVI e perdurado até o século XIX. Para atingir o objetivo, dialogaremos com obras de grandes historiadores e antropólogos que pesquisam a interação da Igreja com a atividade escravista no Novo Mundo. Através da instituição do “padroado Real”, a Igreja Católica - e todas as suas Ordens - ficaram subordinadas ao controle do Reino português, tendo em contrapartida a exclusividade na evangelização dos povos (índios e negros africanos) nas novas colônias descobertas no Novo Mundo. Com a crescente demanda por mão-de-obra escrava nas colônias portuguesas, a Igreja Católica avalizou (através de Bulas e passagens bíblicas) a escravização dos negros africanos - já que os indígenas eram protegidos pela Companhia de Jesus - favorecendo assim os colonizadores nas atividades mercantis. Conclui-se que a Igreja Católica - em todas as suas esferas, dos Papas aos simples catequistas - tiveram papel relevante e protagonista na escravização de seres humanos, fugindo assim de sua finalidade principal de pregar a paz, o amor e a igualdade entre os homens.
Palavras-chave: Igreja Católica, Padroado Real, Escravização.
ABSTRACT
The main objective of this article is to characterize the participation of the Catholic Church in the phenomenon of black African slavery in Portuguese America for approximately three and a half centuries, starting in the 16th century and lasting until the 19th century. To achieve the objective, we will dialogue with the works of great historians and anthropologists who research the interaction of the Church with the slave activity in the New World. Through the institution of the “Royal patronage”, the Catholic Church - and all its Orders - were subordinated to the control of the Portuguese Kingdom, having in return the exclusivity in the evangelization of peoples (Indians and African blacks) in the new colonies discovered in the New World. With the growing demand for slave labor in the Portuguese colonies, the Catholic Church endorsed (through Bulls and biblical passages) the enslavement of black Africans - since the indigenous people were protected by the Society of Jesus - thus favoring the colonizers in activities merchants. It is concluded that the Catholic Church - in all its spheres, from Popes to simple catechists - played a relevant and protagonist role in the enslavement of human beings, thus fleeing its main purpose of preaching peace, love and equality among men.
Keywords: Catholic Church, Royal Padroado, Enslavement.
1. INTRODUÇÃO
(…) Nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa autoridade apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de cristo, onde quer que estejam como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades (…) e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens semelhantes (BULA DUM DIVERSAS - NICOLAU V, 1452).
O texto em epigrafe, é um recorte da Bula Papal Dum Diversas, emitida em 1452 pelo Papa Nicolau V, concedendo a Afonso V (Rei de Portugal) o direito de escravizar - de forma perpétua - todos os habitantes dos territórios africanos ao Sul do Cabo Bojador.
O período que compreendeu as grandes navegações e o inicio da colonização portuguesa no Novo Mundo trouxe o horror do comércio de escravos. Entre os séculos XVI e XIX o tráfico negreiro foi responsável pelo aprisionamento de milhares de seres humanos, que foram transportados para longe de suas famílias e de suas terras, em milhares de viagens transatlânticas intermináveis. Toda essa gigantesca estrutura de escravização de pessoas redesenhou o mapa mundial; propiciou a criação de novas colônias; fez surgir novas rotas de navegação e de comércio; ampliou o leque de produtos comercializáveis entre a América, Europa, África e Ásia e ajudou a povoar as colônias portuguesas, uma preocupação constante do Rei de Portugal, devido ao seu grande pesadelo, o risco de invasão em suas terras por Nações inimigas. Ao longo de três séculos e meio foram traficados aproximadamente 12 milhões de pessoas. Desse montante, 4.9 milhões (47%) tiveram como destino o Brasil Colônia. Segundo o professor da Universidade de Emory, em Atlanta, nos EUA, Davis Eltis (2207),
O tráfico de escravos transatlântico foi o maior deslocamento forçado de pessoas a longa distância ocorrida na história, tendo constituído, até meados do século XIX, o maior manancial demográfico para o repovoamento das Américas após o colapso da população ameríndia. Cumulativamente, até 1820, para cada europeu quase quatro africanos haviam atravessado o Atlântico, e, dadas as diferenças nos índices de gênero entre os fluxos de migrantes europeus e africanos, cerca de quatro em cada cinco mulheres que atravessaram o Atlântico vinham da África. (ELTIS, 2007).
Durante todo o período escravista (responsável pelo genocídio e o etnocídio de indígenas e de negros africanos) foi constante a colaboração de mão dupla entre o Estado e a Igreja Católica e suas Ordens religiosas. Durante o processo escravista, milhões de pessoas - de ambos os sexos - foram sumariamente desenraizados de sua cultura e religião (etnocídio) para ser introduzidos no Cristianismo. Essa conversão era realizada ainda nos navios negreiros, já que em toda embarcação tinha entre seus tripulantes um Padre, incumbido de batizar a todos os cativos, de forma coletiva. Depois de jogar água santa em todos e balbuciar algumas poucas palavras, o Padre entregava um pedaço de papel com o novo nome (cristão) do escravo. (GOMES, 2019).
A colonização do Brasil foi exploratória e com o intuito de encontrar produtos mercantilistas (ouro, pedras preciosas, madeira...) que pudessem manter o status quo da nobreza e da burguesia portuguesa. Com o passar do tempo, foram surgindo outras riquezas que estavam em alta. Para abastecer, principalmente a Europa, Portugal recorreu primeiramente à mão-de-obra escrava dos indígenas e, posteriormente, dos negros africanos. Para Caio Prado Junior (1981),
Se vermos a essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que se nos fazem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira (JUNIOR, 1981, p. 31-32).
Portanto, para garantir a sobrevivência da Corte portuguesa era necessário um empreendimento hercúleo que proporcionasse mão-de-obra escrava e produzisse produtos para abastecer as grandes metrópoles europeias, a solução encontrada foi a escravidão de pessoas, dos dois lados do oceano Atlântico.
Este artigo procura esmiuçar a colaboração da Igreja Católica com o reino português frente à escravização de pessoas no período de 350 anos, que nos abasteça com informações que caracterizem a participação, as justificativas ideológicas e os modus operandi dos religiosos envolvidos nessa empreitada escravista no Brasil. Para atingirmos esses objetivos, trabalhamos com pesquisas exploratórias, de caráter qualitativo, e dialogamos com obras de historiadores que se dedicam ao tema há várias décadas, como por exemplo, Laurentino Gomes, Caio Prado Junior, David Eltis, entre outros. O escopo da pesquisa é o século XVI e o século XVIII, período que correspondeu ao ápice da escravização de pessoas no Novo Mundo.
Todavia, é importante salientar que o trabalho não tem como meta julgar os motivos que levaram a Igreja Católica a referendar a escravidão, em sua aliança com o Estado Português, já que o fenômeno escravista deve ser necessariamente analisado a partir de nuanças situadas no tempo e no espaço, levando em consideração que a escravidão - apesar de desumano - era aceita pela Lei e pela a sociedade da época e que “todo discurso humano é relativo a um determinado lugar, que não existe discurso senão situado” (MATOS, 2011, p.15).
O presente trabalho está dividido em três capítulos: No primeiro capítulo é realizado um pequeno histórico sobre o fenômeno escravista e a participação da Igreja Católica nessa empreitada de escravização do negro africano; no segundo capítulo, dissertaremos a fundo o “Padroado Real”, a colaboração da Igreja e suas justificativas para o tráfico negreiro, do Continente africano para o Brasil colônia; no terceiro e último capítulo são apresentadas às considerações finais da pesquisa.
2. A PARTICIPAÇÃO DA IGREJA NO FENÔMENO ESCRAVISTA
O Padroado Real
O “Padroado Real” foi um acordo jurídico entre a Igreja Católica Apostólica Romana e o Reino de Portugal que delegava a administração dos assuntos religiosos aos Reis de Portugal. Em suma, os Reis e seus sucessores ficaram investidos de autoridade para administrar a Igreja, suas Ordens e seus membros nos território do além-mar. O acordo foi motivado principalmente pela falta de recursos da Igreja para administrar suas Ordens e suas obras evangelizadoras. Assim sendo, o Rei de Portugal poderia: arrecadar dízimos para ajudar na manutenção da estrutura da Igreja; nomear padres e bispos; criar novas dioceses; criar novos bispados; construir Igrejas; aprovar e reprovar bulas papais nos territórios de Portugal; controlar os membros das Ordens religiosas; conduzir investigações do Tribunal Eclesiástico. Para o historiador, Cléber Eduardo dos Santos Dias,
O próprio Império percebe que esses poderes não eram tão extensivos assim. A Igreja, ao conceder esse estatuto do Padroado ao Império Português, deu a entender que cabia ao rei, e ao seu legítimo representante, levar e propagar a fé nos territórios conquistados e a serem descobertos. Também dar manutenção a este serviço missionário, mas não meter-se diretamente na nomeação de candidatos e tudo aquilo que já fazia o Império. De onde, portanto, vinha esse poder? Vinha, acima de tudo, de uma extrapolação dos limites do Padroado. O Padroado e os patronatos significavam um rei que toma para si o cuidado da Igreja, mas não uma ingerência nas coisas espirituais, apenas uma relação comum do civil (DIAS, 2022).
O “Padroado” deu ao Estado direitos restritos para propagar a fé cristã, consolidando assim a Igreja nos territórios além-mar. É lógico, que esses direitos foram extrapolados pelo Estado. Segundo Dias (2022), a Coroa Portuguesa determinava, entre outras coisas, quantas velas poderiam ter nos altares e o número de celebrações religiosas a ser realizadas nas Paroquias.
A Igreja e a Escravização no Brasil Colônia
A Igreja Católica foi partícipe da escravidão de negros africanos no Brasil colônia. Além de legitimar e justificar o fenômeno escravista, a Igreja Católica e suas Ordens religiosas participavam do comércio de negros africanos, mantendo um intercambio escravista entre as Ordens radicadas no Brasil e no Continente africano. Além da compra e da venda de escravos, a Igreja era beneficiária com a doação de escravos. As doações eram feitas pelo Estado ou pela iniciativa privada. Foi o que aconteceu, por exemplo, no primeiro desembarque de escravos de propriedade de D. Henrique (Infante de Sagres) em Lagos, na região de Algarves, no Sul de Portugal, em 1.444, quando 231, de um lote de 235 escravos, foram arrematados, sendo quatro deles doados para Igrejas e Monastérios. Dos quatro que foram doados a Igreja, um foi vendido no mesmo dia, pois a Igreja precisava de novos ornamentos para compor o altar. (GOMES, 2019, p. 51).
A escravidão no Novo Mundo durante os século XVI e XIX foi legitimada e institucionalizada pela Lei, pela Igreja Católica e pela sociedade, já que naquela época um escravo era uma mercadoria tão desvalorizada e barata que qualquer pessoa poderia comprar escravos, do Rei às pessoas mais simples: trabalhadores, prostitutas, donas de casa (SAUNDERS, 1982).
O Clero instituído no Brasil colonial condenou e trabalhou para acabar com a servidão dos indígenas, porém, agiu de forma contrária com relação à escravidão do negro africano, já que a servidão do negro era considerada por todos - inclusive pela Igreja - como algo necessário para a manutenção do status quo do Estado. A Igreja - enquanto a representação do Cristo de amor e benevolência na Terra - se limitou apenas a condenar a forma truculenta e violenta com que os negros africanos eram tratados pelos seus senhores e feitores. Alguns Jesuítas, como por exemplo, Benci, Antonil e Ribeiro Rocha chegaram a criar recomendações de como as punições aos escravos deveriam ser, mas foram apenas palavras ao vento que em nada modificou as condições cruéis do cativeiro no Brasil. Para o Padre Manuel Ribeiro Rocha,
Para o castigo ser bem ordenado [...], não se deve ministrar logo que o escravo fizer o erro ou cometer o delito; é necessário algum intervalo maior ou menor, conforme a gravidade do caso, para atender às circunstâncias ocorrentes; e a razão é porque a deformidade do erro, ou do delito, naturalmente altera os espíritos, e alterados estes, se comove logo a ira [...], e o castigo não se deve ministrar com cólera e furor, senão com brandura e caridade e, por isso, é necessário esperar que os espíritos sosseguem e que a turbação pela cólera se serene (ROCHA, 2017, p, 140).
Ribeiro Rocha, assim como os dois outros Jesuítas citados, foram intelectuais que se dedicaram a estabelecer limites para as punições dos escravos no Brasil colônia, apesar de legitimarem a estrutura escravista e usar os escravos sem o menor pudor.
Em 1.611, o Padre Luís Brandão, que ocupava o cargo de reitor do Colégio de Luanda, escreveu uma carta ao Jesuíta Alonso de Sandoval, missionário em Cartagena das Índias, na Colômbia. Nas suas palavras,
Nós mesmos que vivemos aqui já faz quarenta anos e temos entre nós padres muito doutos, nunca consideramos este tráfico como ilícito. Os padres do Brasil também não, e sempre houve naquela província padres eminentes pelo seu saber. Assim tanto nós como os padres do Brasil compramos aqueles escravos sem escrúpulos (HOORNAERT, 1983. p. 261).
Para Serafim Leite (1945) em sua obra “História da Companhia de Jesus no Brasil” havia “três questões: o da legalidade jurídica, a da capacidade da Companhia para possuir escravos e a do titulo justo ou injusto dos escravos adquiridos” (LEITE, 1945). E concluiu:
A questão da legalidade não chegou sequer a levantar-se para os escravos africanos. Sendo legal essa escravatura, a oposição dos Jesuítas equivaleria a uma revolta, e nunca os Jesuítas se colocariam contra as Leis. Se se pudéssemos em oposição ao Governo que a legalizou, logo no principio de sua catequese inutilizá-la-iam antes mesmo de iniciar. Ela, que hoje nos causa tanto horror, era, naquele tempo, uma instituição universalmente admitida. (LEITE, 1945, P. 350-351).
A escravidão era uma estrutura complexa que fazia girar a engrenagem mercantilista, gerando lucros para: financiadores, marinheiros, estaleiros, barqueiros, donos de pequenas mercearias, dentre outras atividades e acumulava riqueza para o Estado e para a Igreja, com a cobrança dos impostos e dos serviços clericais. Discutir a questão moral do fenômeno escravista era perigoso, mas existiram exceções. Um exemplo foi o Padre espanhol, Miguel Garcia (1.550-1.614), que chegou a Bahia para lecionar teologia, em 1.576. Miguel Garcia falava abertamente que os padres deveriam recusar o sacramento da absolvição dos pecados para todas as pessoas possuidoras de escravos. Como resultado de sua ousadia, Miguel Garcia foi exortado, em 1.583, para a Espanha. Antes, ele ainda escreveu uma carta ao Padre Geral da Companhia de Jesus,
A multidão de escravos que tem a Companhia nesta Província, particularmente neste colégio, e coisa que de maneira nenhuma posso tragar maxime (sic) por não poder entrar no entendimento serem licitamente havidos… Alguma vez me passou por pensamento que mais seguramente serviria a Deus e me salvaria in saeculo (no mundo) que em Província, onde vejo as coisas que vejo (LEITE, 1945, P. 227-228).
O destino do Padre Miguel Garcia foi apenas à expulsão do Brasil, o que não aconteceu com o Padre Gabriel Malagrida (1.689-1.761), que foi queimado vivo pela inquisição, em 21 de Setembro de 1.761, na Praça do Róssio, em Lisboa, supostamente a mando do Marquês de Pombal.
Os Motivos da Legitimação da Escravidão pela Igreja Católica
O papel da Igreja Católica no processo escravista foi de partícipe e de cumplicidade, assim como toda a sociedade da época. Religiosos recebiam escravos como doação, mas também realizavam a compra e a venda de negros africanos, que eram utilizados nas muitas fazendas e colégios das Ordens religiosas, no Novo Mundo. Todavia, existiam diferenças cruciais no processo de escravidão, realizado pelos membros da Igreja e pelos escravocratas, não ligados ao Clero. A saber: a forma como os religiosos aplicavam as punições aos escravos faltosos e o combate ao cativeiro dos indígenas, pelos colonizadores. Leia aqui: Série Escravidão: A Doutrina dos Jesuítas e as Punições aos Escravos.
Destarte, é relevante questionar por que uma instituição que tem entre seus pilares: a paz, a igualdade entre os homens e o amor ao próximo participou da legitimação do sistema escravista, durante 350 anos? Segundo o historiador Tulio Augusto de Paiva Pereira (2018),
Contra todos os ensinamentos de Jesus Cristo - criador e inspirador da Igreja - que pregou principalmente a paz, a fraternidade, a igualdade, a justiça e o respeito entre os homens; a Igreja, nesta fase de sua história, se coloca ao lado da exploração, da violência, da desigualdade e do terror sobre pessoas indefesas, caçadas e aprisionadas como animais do outro lado do oceano e trazidas à força para o trabalho escravo, para o cativeiro, para os castigos horrorosos e para a morte em todo o continente americano e, mais especificamente, no Brasil (PEREIRA, 2018, p. 4).
Segundo Moraes (1998, p. 213), Os motivos do engajamento da Igreja na escravização do negro africano “[...] foram muitos, e o universo criado pelo sistema escravista foi social e culturalmente bastante complexo e diversificado, não permitindo nenhum tipo de reducionismo e explicação simplificadora”. Lima (2001, p. 41) explica que realmente é difícil explicar essa legitimação da escravidão, sendo melhor “basear-se na mentalidade da época”. Apesar disso, em 1.537, o Papa Paulo III (1.534-1.549) condenou, através da Bula Papal Veritas Ipsa (a própria verdade), a escravidão de seres humanos.
Determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as gentes que daqui em diante vierem à notícia dos Cristãos, ainda que estejam fora da fé de Cristo, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, nem devem ser reduzidos à servidão. Os índios são verdadeiros homens, não somente capazes de entender a fé católica como, de acordo com nossas informações, acham-se desejosos de recebê-la (BULA VERITAS IPSA).
Todavia, as palavras de Paulo III não se referiam à escravidão do negro africano, mas sim, e tão somente, da escravização dos indígenas. O historiador britânico Jonathan Wright (2009, p. 115), afirma: que “Deus certamente queria que os índios fossem livres. Sua compaixão era de certa forma seletiva: qual a melhor maneira de remover o terrível fardo das costas dos nativos americanos do que aumentar o número de escravos africanos negros que chegava à colônia”. Sobre as palavras de Wright (2009), é sabido que a empresa escravista de negros africanos se intensificou por volta da década de 1.550, devido ao aumento da demanda de mão-de-obra escrava para a mineração e para a plantação da cana-de-açúcar, mas que, em pouco tempo, se tornou também uma importante fonte de geração de riqueza, tanto para os comerciantes de escravos, quanto para o Estado e a Igreja. Portanto, para suprir a enorme demanda de mão-de-obra a solução encontrada foi o escravo negro africano, já que o tráfico transatlântico já funcionava em grande escala e era “relativamente estável” (SCHWARTZ, 2015, p. 93).
Outro ponto relevante é que os indígenas - depois de muita pressão dos Jesuítas - passaram a contar com a proteção da Coroa Portuguesa, através de uma Lei que decretou a proibição da escravização dos índios. Como já era de se esperar, a escravização dos indígenas diminuiu, mas continuou, ”sobretudo em locais nos quais não havia grande número de escravos africanos, como São Paulo, Paraná e Maranhão” (SILVA, 2022).
As Justificativas Teóricas para a Escravidão Africana
Muito se discute sobre os motivos (econômicos, religiosos e jurídicos) que levaram a Igreja Católica a legitimar a escravidão de negros africanos, em detrimento da escravização do indígena, no Novo Mundo.
É sabido que a Igreja foi uma importante aliada da Coroa Portuguesa no processo de expansão marítima e comercial. A Igreja Católica travava uma luta por fiéis com os muçulmanos e via com bons olhos a exploração e descobertas de novos territórios, para implantar a sua missão evangelizadora. Segundo Costa (2008),
Neste contexto, Igreja e Coroa Portuguesa estreitavam suas relações, unindo forças na conquista das riquezas e das almas além-mar. Isso porque, colonização e evangelização faziam parte de um grande empreendimento, no qual a cruz e a espada configuravam-se como elementos indissociáveis na conquista da América. Dessa forma, a Igreja surge como principal legitimadora das ações das Coroas Ibéricas, incluindo a escravização dos africanos (COSTA, 2008, p. 03).
De acordo ainda com o autor,
Charles Boxer destacou em suas várias obras o importante papel desempenhado pela Igreja Católica no processo de colonização empreendido pelas potências europeias em diferentes partes do mundo. “Essa união indissolúvel da Cruz e a Espada”, afirma o autor, “estava exemplificada no exercício do Padroado Real da Igreja no ultramar”. O Padroado foi um instrumento imprescindível na conquista das terras além-mar, “[...] e durante sua longa e tempestuosa história na luta pelas almas foi muitas vezes a causa de disputas árduas entre missionários portugueses e os de outras nações católicas romanas”. (COSTA, 2008, p. 04).
A Bíblia - em seus 72 livros (Bíblia católica) e 66 livros (Bíblia Protestante) - é um repositório de passagens que, ao longo dos séculos, vêm gerando várias interpretações e debates acerca da palavra de Deus, sobretudo em passagens que têm por objetivo conduzir o “rebanho de Deus” pelo caminho certo, elevando assim o desenvolvimento moral e espiritual da humanidade.
No primeiro livro da Bíblia (Gênesis) existem três passagens que teriam, para os doutores da Lei da época, ligação direta com a legitimidade da escravidão de seres humanos. São elas: o pecado original de Adão e Eva, a maldição de Cam e o assassinato de Abel, por seu irmão Caim.
O Pecado Original
A história de Adão e Eva tem, em sua essência, a escravidão como uma figura de linguagem que descreve a desobediência a Deus. A desobediência de Adão e Eva abriu as portas para um estado de pecado (escravidão), que seguiria a humanidade desde então. “Todavia, a morte reinou desde o tempo de Adão até o de Moisés, mesmo sobre aqueles que não cometeram pecado semelhante à transgressão de Adão, o qual era um tipo daquele que haveria de vir” (ROMANOS 5:14). Para Azzi (2008, p. 28), “a escravidão era consequência do pecado de Adão e da maldição imposta ao homem de trabalhar com o suor de seu rosto. O trabalho escravo evidenciava na sociedade humana a força dessa maldição”; já para José de Carvalho Silva (2011),
Doutores da Igreja, e dos mais ilustres, procuraram explicar e justificar a escravidão. Santo Agostinho tinha-a como consequência do pecado - não havia escravo que não merecesse ser escravo - e a inscrevia no grande esquema ordenado do mundo. Santo Isidoro de Sevilha iria mais longe: a escravidão tinha origem divina e se destinava a resgatar o cativo de sua perversidade genética. Já para Santo Tomás de Aquino, que teorizou demoradamente sobre a escravidão, ela, embora dolorosa, era útil e necessária ao cumprimento dos propósitos na natureza (SILVA, 2011, p. 584).
No Catecismo da Igreja Católica (cf.n.404) temos que: “Todo o gênero humano é, em Adão, «sicut unum corpus unius hominis - como um só corpo dum único homem»”. Em virtude disso, toda a humanidade é enquadrada no pecado original de Adão e Eva.
A Maldição de Cam
Outra justificativa pautada pela Igreja Católica teve relação direta com a propagação da Doutrina Cristã na Costa da África no período das Grandes Navegações, sendo que essas Doutrinas não foram aceitas pela população nativa, já que o Islamismo já tinha iniciado o seu processo de propagação na região. Diante da dificuldade de evangelização no Continente africano, a Igreja resolveu usar a Bíblia para “afirmar que os negros africanos, eram descendentes de Cam e de Canaã, personagens bíblicos, filho e neto de Noé, que foram amaldiçoados por ele.” (RAMOS, 2021). O motivo que levou Noé a amaldiçoar o filho (Cam) e o neto (Canãa) encontra-se no livro Gênesis, capítulo 9, versículos 20-25.
Sendo Noé lavrador, passou a plantar uma vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e se pôs nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber, fora, a seus dois irmãos. Então, Sem e Jafé tomaram uma capa, puseram-na sobre os próprios ombros de ambos e, andando de costas, rostos desviados, cobriram a nudez do pai, sem que a vissem. Despertando Noé do seu vinho, soube o que lhe fizera o filho mais moço (BÍBLIA, 2014, livro: GÊNESIS. Capítulo: 9, Versículos 20-25, p. 8).
Ao acordar e saber do ocorrido, Noé lança uma maldição para Cam e Canaã. É importante observar que a descendência de Cam foi que originou os povos africanos, ameríndios e parte dos asiáticos e da Oceania. “Nesse momento, é fundamental recuperarmos a maldição que Noé proferiu contra Canaã: Maldito seja Canaã, que seja servo dos servos de seus irmãos.” (ROEDEL, 2020, p. 04). “De acordo com a Bíblia, Cam foi um dos filhos de Noé que havia partido para o sudeste da África, entre as localidades próximas ao Oriente Médio” (RAMOS, 2021). Para Zurara (1937):
E aqui haveis de notar estes negros, posto que sejam Mouros como os outros, são, porém, servos daqueles por antigo costume, os quais creem que seja por seu filho Cam, pela qual maldição que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Cam, pela qual maldisse, que a sua geração fosse sujeita a todas outras gerações do mundo, da qual estes descendem. (ZURARA. 1937, p. 85).
De acordo com Azzi (2008, p.29), “os africanos eram os descendentes de Cam, o filho de Noé amaldiçoado pelo pai por ter zombado de sua nudez, quando jazia embriagado após provar o fruto da videira”. Parece pouco verossímil que Noé tenha amaldiçoado o filho apenas por ele ter zombado de sua nudez. Entretanto, os escritos da Bíblia possuem muitos eufemismos, que possibilitam muitas interpretações diferentes. No caso de “ver a nudez” pode também significar “ter relações sexuais”. Em Levítico temos: “Não descobrirás a nudez de teu pai e de tua mãe; ela é tua mãe; não lhe descobrirás a nudez” (Levítico 18:7). Nesse sentido, Deus impõe leis sobre relações sexuais proibidas.
Independente, das interpretações dos textos bíblicos, a Igreja alimentou essa ideia que os africanos não só poderiam como deveriam ser escravizados, pelo simples fato de sua descendência com Cam e Canaã. Além disso, o Clero da época considerava os negros ignorantes, por eles não terem conhecimento da Bíblia e do Cristianismo (RAMOS, 2021). “[...] Os cristão, naturalmente, faziam esta justificativa remontar ao texto bíblico. A maldição lançada por Noé ao seu filho Cam havia recaído sobre os negros, que seriam seus descendentes, destinando-os a servidão”. (SANTOS, 2014, p. 21).
Assim sendo, o Cristianismo deveria exercer o seu papel civilizatório e retirar os negros africanos da barbárie, convertendo-os a fé Cristã, mesmo que isso significasse, para os povos da África, a servidão.
O Assassinato de Abel
Outra versão - a última que trataremos neste artigo - nos remete ao assassinato cometido por Caim, motivo da revolta de Deus e da maldição. “Disse, porém, Caim a seu irmão Abel: Vamos para o campo. Quando estavam lá, Caim atacou seu irmão Abel e o matou”. (GÊNESIS, 4:8). Depois do fato consumado, Deus, apesar do grave crime praticado contra Abel, teve misericórdia e fez uma marca (sinal) em Caim, para que ele não fosse assassinado, e o amaldiçoou para sempre. “[...] Os negros traziam na pele o sinal imposto pelo próprio Deus, sinal este, que para alguns religiosos, seria que ele, Caim, teria se tornado negro e foi o pai dos africanos e assim amaldiçoados a serem escravos até o fim dos dias na Terra” (RAMOS, 2021, p. 16).
As narrativas e as justificativas bíblicas utilizadas para legitimar a servidão dos negros africanos, isentando assim os colonizadores de qualquer culpa ou crime contra a humanidade - até mesmo porque naquele tempo o negro não era considerado humano - são vistas na contemporaneidade como inacreditáveis, sobretudo se levarmos em consideração que o referido livro da Bíblia, Gênesis, foi escrito de forma totalmente figurada. Na questão desta justificativa, por exemplo, existem autores - alguns religiosos - que teorizam que a história de Caim e Abel seria apenas uma figuração dos conflitos existentes entre pastores nômades e agricultores, na antiga Palestina. No caso, Caim representava os pastores e Abel os agricultores. Todavia, nesse caso, a verdade dos fatos pouco importava, sendo as interpretações errôneas amplamente divulgadas para os povos, que as assimilavam como se verdades fossem.
Para Azzi (2008, p. 28), a guerra justa era a principal justificativa para a servidão. “Os negros poderiam ser escravizados, desde que capturados num combate envolvendo interesses de promoção da fé, no Continente africano”. Já para Pereira (2018, p. 11), seria difícil identificar na colônia, como se deu o aprisionamento dos muitos negros que chegavam para a lida diária no Novo Mundo. Para José Rivair Macedo (2013, p. 116), “Uma das justificativas ideológicas ao aprisionamento das populações africanas era a sua posterior conversão ao cristianismo, já que antes da travessia do Atlântico muitos cativos eram batizados e começavam a receber os rudimentos da doutrina cristã”. Para Hornaert et al (2008, p. 257), a união da Coroa Portuguesa com a Igreja Católica foi importante para legitimar a escravidão, pois “a religião funcionava na maioria dos casos como uma lavagem cerebral no sentido de inculcar nos escravos as virtudes da obediência servil, da paciência passiva, da dependência e da entrega de sua dignidade” Hornaert et al (2008, p. 257).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As pesquisas bibliográficas constantes neste artigo esmiuçaram os motivos e as justificativas que possibilitam uma analise dos cenários do sistema escravista, a partir do século XVI, com a união da Coroa Portuguesa com a Igreja Católica, buscando legitimar a escravização de seres humanos, baseados em pressupostos bíblicos.
Diante da luta dos Jesuítas contra a escravização dos indígenas e com o intuito de expandir a mineração e a lavoura, o tráfico transatlântico de negros africanos, em pouco tempo, se consolidou como um negócio altamente rentável. Para promover a manutenção desse sistema foi criado, na década de 1.400, o “Padroado Real”, um acordo instituído entre a Santa Sé e o Governo Português, que transferia poderes para o Estado promover a fé Cristã nos novos territórios descobertos, com a expansão das Grandes Navegações.
A escravidão de negros africanos entre os séculos XVI e XIX não causou nenhum tipo de contrariedade ou remorso por parte do Clero, estabelecido dos dois lados do Oceano Atlântico. A voz de repudio que se esperava foi substituída pelo silêncio do consentimento, por Bulas Papais, por acordos que tinham por objetivo expandir o tráfico negreiro e pelas muitas justificativas bíblicas, para legitimar a servidão dos negros.
Todavia, a participação do Clero no sistema escravista não se resumiu a criação de justificativas (através de passagens bíblicas interpretadas ao bel-prazer dos religiosos) para legitimar a servidão, já que eles também participaram ativamente do comércio escravista, sendo beneficiados pela mão-de-obra escrava nas suas muitas fazendas, engenhos e colégios.
Os preceitos contidos no livro da Gênesis (pecado original, a maldição de Cam e o assassinato de Abel) usado em prol da manutenção do status quo abriram as portas do “inferno” para milhões de homens e mulheres que viveram e morreram na servidão no Novo Mundo, diante do olhar complacente da Igreja.
Todavia, o intuito principal deste artigo não foi procurar culpado ou condena-los, mas tão somente revelar, através de documentos científicos, a união da Igreja com a Coroa Portuguesa que culminou com a efetiva participação dos envolvidos no fenômeno mais vergonhoso da história da humanidade. É relevante considerar que um fenômeno dessa magnitude deve ser analisado a partir de nuanças situadas no tempo e no espaço e que “todo discurso humano é relativo a um determinado lugar, que não existe discurso senão situado” (MATOS, 2011, p.15).
BIBLIOGRÁFIA
AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida, SP: Santuário, 2008.
Bula Veritas Ipsa MONTFORT Associação Cultural. http://www.montfort.org.br/bra/documentos/decretos/veritas_ipsa/Online, 06/12/2022 às 13h04min: 36h.
Cf.: Apud HOORNAERT, 1983. P. 261.
Cf.: JÚNIOR Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1981. pp. 31-32.
Cf.: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Portugália, 1945. V. VI. Pp. 350-351.
DIAS, Cléber Eduardo dos Santos. Reis se metendo na vida da Igreja? O historiador Cléber Eduardo explica o regime do Padroado. Brasil Paralelo, São Paulo, 17 de Agosto de 2022. Disponível em: https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/padroado. Acesso: 04-12-2022.
ELTIS, David. Um breve resumo do tráfico transatlântico de escravos. In: The Transatlantic Slave Trade Database. Voyages. A travessia do Atlántico. Disponível em: http://slavevoyages.org/assessment/essays# Acesso em: janeiro de 2007.
LEITE, S., História da Companhia de Jesus no Brasil, p. 227-228.
MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013.
MATOS, Henrique Cristiano José. Nossa história - 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. 3. Ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
PEREIRA, Tulio Augusto de Paiva. A igreja católica e a escravidão negra no Brasil a partir do século XVI. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 03 Ed. 05, Vol. 05, pp. 14-31, Maio de 2018. ISSN: 2448-0959 Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/historia/igreja-catolica.
RAMOS, Lediane Pereira. JUSTIFICATIVAS DA IGREJA CATÓLICA PARA O ESCRAVAGISMO: NO BRASIL COLÔNIA. Revisto Ibera- Americana de Humanidades, Ciências e Educação- REASE, São Paulo, ano 2021, v. 7, n. 9, ed. 9, p. 604-623, 2021.
ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado: discurso teológico-jurídico em que se propõe o modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a um e outro foro, os pretos, cativos africanos e as principais obrigações que concorrem a quem deles se servir. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758.
SAUNDERS, A. C. de C. M. A Social History of Black Slaves And Freedmen in Portugal, 1441-1555. Nova York: Cambridge University Press, 1982.
SILVA, Daniel Neves. "Escravidão no Brasil"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/escravidao-no-brasil.htm. Acesso em 06 de dezembro de 2022.
SILVA. José de Carvalho e. A manilha e o libambo. A África e a escravidão, de 1500 à 1700. Apresentação: José Reis. 2ª edição. Ed. Nova Fronteira. 2011.
WRIGHT, Jonathan. Os jesuítas: missões, mitos e histórias; tradução André Rocha. Rio de Janeiro: Sinergia: Relume Dumará, 2009.
Por Walter Fontenele | Portalphb
Deixe Seu Comentário