Série Escravidão: Navio Negreiro, o Inferno Flutuante

Navio Negreiro
📷Navio Negreiro © Otávio Silveira
🏠Parnaíba (PI)

Artigo de Walter Fontenele (Graduado Antropologia -UESPI).

Este é o quinto artigo da Série Escravidão. Recomendamos a leitura dos artigos anteriores:


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo principal a caracterização de uma das principais ferramentas utilizadas nos três séculos e meio do período escravista entre o Continente africano e o Novo Mundo, o navio negreiro, embarcação que se tornou um verdadeiro inferno flutuante para centenas de milhares de escravizados africanos. Foi utilizada a metodologia de pesquisa exploratória com caráter qualitativo, através de pesquisas históricas e bibliográficas de historiadores que estudam a dinâmica do tráfico negreiro há décadas. Conclui-se que apesar das muitas atualizações realizadas nos navios negreiros durante o período escravista, as condições sanitárias e de higiene eram as piores possíveis, o que causava dezenas e dezenas de mortes a cada nova travessia do Atlântico, sendo os corpos dos escravos mortos - e de alguns ainda vivos - jogados das amuradas dos negreiros, para serem devorados pelos cardumes de tubarões, que seguiam os navios por milhares de quilômetros, mar adentro. 

Palavras-chave: Navios, Negreiros, Tráfico, Tubarões.

ABSTRACT

This article has as its main objective the characterization of one of the main tools used in the three and a half centuries of the slave period between the African Continent and the New World, the slave ship, a vessel that became a true floating hell for hundreds of thousands of enslaved people. Africans. An exploratory research methodology was used with a qualitative character, through historical and bibliographic research by historians who have been researching the dynamics of the slave trade for decades. It is concluded that despite the many updates carried out on slave ships during the period of slavery, the sanitary and hygienic conditions were the worst possible, which caused dozens and dozens of deaths at each new crossing of the Atlantic, with the bodies of dead slaves - and of some still alive - thrown from the rails of the slavers, to be devoured by the shoals of sharks that followed the ships for thousands of kilometers, out to sea.

Keywords: Ships, Slavery, Traffic, Sharks.

1. INTRODUÇÃO

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, senhor Deus! Se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co´a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites! Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! (ALVES, 2000).

O texto em epigrafe é uma estrofe do poema “Navio Negreiro” do escritor baiano, Castro Alves (1.847-1.1871), publicado em meados de 1.869 e que trata do tema abolicionista, com ênfase na escravidão no Brasil.

Um Pouco de História

Durante aproximadamente três séculos e meio, o comércio de escravos dos dois lados do Atlântico foi o maior e mais cruel “deslocamento de pessoas a longa distancia ocorrida na historia da humanidade” (ELTIS, 2007). Em todo esse período, mais de 12 milhões de pessoas foram capturadas e escravizadas no Continente africano e transportadas, via oceano Atlântico, para o Novo Mundo. O Brasil foi um dos grandes protagonistas dessa aventura escravista, tendo sido responsável pelo desembarque de aproximadamente 4.9 milhões, ou seja, 47% do volume total de escravizados (GOMES, 2019).

O fenômeno da escravidão de africanos no Brasil durante aproximadamente 350 anos é tema recorrente em trabalhos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Ao longo do tempo, muitos pesquisadores se debruçaram sobre documentos históricos e bibliográficos para escrever e descrever toda a dinâmica de sofrimento do comércio de gente dos dois lados do Atlântico, desde o aprisionamento até a chegada ao destino final, local de labuta, dor, sofrimento e morte.

A escravidão vem ao longo do tempo gerando debates entre pesquisadores sobre como seu deu o processo escravista em solo brasileiro, com vertentes que vislumbram uma escravidão mais suave, em relação, por exemplo, com o processo escravista nos Estados Unidos da América; na contramão desta abordagem, temos as pesquisas que enfatizam os horrores a que os escravos foram submetidos na relação interpessoal, entre escravo e colonizador; já outros pesquisadores, enfatizam a existência de uma “consciência escrava fragmentária e ambígua” que possibilitaria para os escravizados uma elevação à condição de pessoa. Sendo assim, estariam aptos a lutarem pela liberdade “por meio de suas lutas cotidianas ao longo do tempo” (BARREIRO, 2013).

Neste trabalho, temos como objetivo caracterizar uma das ferramentas utilizadas pelo comércio de pessoas do Continente africano para o Brasil Colônia entre os séculos XVI e XIX e que foi peça fundamental na navegação transatlântica e na engrenagem escravista, o navio negreiro, embarcação que se tornou um verdadeiro inferno flutuante para centenas de milhares de escravizados africanos.

Com o ensejo de atingimos o objetivo do trabalho, foi utilizado à metodologia de pesquisa exploratória (qualitativa), através de leituras de documentos e pesquisas de historiadores que estudam a problemática da escravidão há décadas, como, por exemplo, Marcus Rediker, Florentino Gomes, David Eltis, entre outros.

O presente artigo está estruturado em três tópicos: No primeiro são feitas referências de estudos realizados por vários autores com narrativas históricas acerca da problemática da escravidão do Continente africano ao Continente americano; no segundo, foram abordados, em detalhes, algumas características de uma das principais ferramentas de fomento da escravidão, os navios negreiros; no terceiro e último são apresentadas às considerações finais.

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2. O NAVIO NEGREIRO

O navio negreiro era conhecido como “tumbeiro”, palavra derivada de tumba, devido, principalmente, aos altos índices de mortes de escravizados durante as viagens do tráfico negreiro. No período de 1.444 a 1.866 foram realizadas aproximadamente 36 mil empreitadas escravistas, transportando mais de 12 milhões de pessoas, em condição de escravidão. Para o historiador Marcus Rediker, o navio negreiro “era uma estranha combinação de máquina de guerra, prisão móvel e fábrica” (REDIKER, 2011).

Os navios negreiros eram embarcações visadas pelos corsários, por isso, era necessário que estivessem equipados com canhões (que eram utilizados para se defender e atacar fortificações em terra, com o intuito de forçar negociações); eram, logicamente, prisões móveis (pois, transportavam centenas de escravizados em seus porões); e eram, por outro lado, fábricas (já que entre os tripulantes existiam vários profissionais para a realização de diversos tipos de reparos, durante as travessias). Segundo Laurentino Gomes (2019),

Havia uma rigorosa organização do trabalho a bordo, com hierarquias, papeis e tarefas cronometradas, de modo a tornar o mais eficiente possível à produção desse misto flutuantes de fábrica, máquina de guerra e presidio. (GOMES, 2019, p, 277-278).

As viagens transatlânticas eram um inferno para os cativos africanos que eram amontoados em espaços insalubres e minúsculos, sendo alimentados precariamente e sujeitos a severas punições, a base de chicotadas e com o uso de vários instrumentos para mobilizar e punir os mais afoitos, como, por exemplo, grilhões, tornozeleiras e o “bacalhau”, pequeno chicote com tiras de couro com nós ou laminas de metal nas pontas (GOMES, 2019).

Além das agressões físicas, os cativos sofriam torturas psicológicas, já que existia a crença entre os escravos africanos que os homens brancos eram canibais, e que todos seriam devorados ao final da jornada. Ser transportados nas condições acima mencionadas, indubitavelmente, aumentavam as chances de mortes entre os cativos. Quando isso acontecia, o local do repouso final para essas pessoas era o mar. Laurentino Gomes (2019) diz que,

Durante mais de três séculos e meio, o Atlântico foi um grande cemitério de escravos. Era no mar, durante a travessia, que as cifras de mortalidade ficavam mais evidentes: como escravos representavam um “investimento”, uma mercadoria valiosa do ponto de vista dos traficantes, cada óbito tinha de ser registrados nos chamados “livros dos mortos” pelos capitães dos navios [...]. (GOMES, 2019, p. 47).

A mortalidade de cativos nos navios negreiros foi tão impactante para a humanidade que chegou inclusive a mudar a rota dos tubarões, que passaram a seguir as embarcações por milhares de quilômetros a espera que algum cativo morto fosse atirado ao mar, da amurada do navio. Segundo o historiador Marcus Rediker (2011),

[...] Os cadáveres eram então atirados sobre as ondas, sem qualquer cerimônia, para ser imediatamente devorados por tubarões e outros predadores marinhos. Segundo inúmeras testemunhas da época, mortes tão frequentes e em cifras tão grandes fizeram com que esses grandes peixes mudassem suas rotas migratórias, passando a acompanhar os navios negreiros na travessia do oceano à espera dos corpos lançados. “Os tubarões começavam a seguir os navios negreiros assim que as embarcações alcançavam à costa da Guiné”. (REDIKER, 2011, p, 245).

Apesar de todos os horrores que os africanos escravizados eram obrigados a suportar, ainda existia o medo que eles tinham dos tubarões. Esse temor, às vezes, era usado pelos capitães e por tripulantes para ameaçar e aumentar ainda mais a pressão psicológica, dentro das embarcações. De acordo ainda com o autor,

Os capitães dos navios negreiros usavam deliberadamente os tubarões para infundir o terror durante toda a viagem. Eles contavam com os tubarões para evitar deserções de seus marinheiros e a fuga de escravos durante as longas permanências na costa africana para recolher a carga humana. (REDIKER, 2011, p. 48)

O Massacre de Zong

Em 29 de Novembro de 1.781, aconteceu um dos episodio mais cruéis do período escravista, a bordo do navio negreiro britânico (Zong). Naquele dia fatídico, 132 escravizados doentes foram lançados ao mar. Na perspectiva do capitão da embarcação, Luke Collingwoo, os escravos doentes eram uma ameaça aos lucros e a própria embarcação, já que, devido a um erro de cálculo, o navio empreendeu viagem com pouca água e pouca alimentação. Na visão do capitão, os valores dos escravos jogados aos tubarões ainda vivos seriam compensados pelo seguro. Porém, diante dos fatos e da pressão de abolicionistas, a seguradora e a justiça decidiram pelo não pagamento do sinistro. O capitão e todos os tripulantes desse horrendo episódio - que ficou conhecido como o ”massacre de Zong” - ficaram impunes. Essa embarcação era originária da Holanda e seu nome era “Zorg” que ironicamente significava: cuidado, zelo. Nas guerras Anglo-holandesas ela foi capturada pelos britânicos e vendida para uma família de traficantes de escravos, tendo seu nome trocado para “Zong” (RICHARDS, 2021).

Diante de tantos sofrimentos físicos e psicológicos não era incomum a pratica do suicídio entre os cativos, a bordo dos navios negreiros. Como os escravos eram considerados apenas uma “mercadoria”, uma “coisa”, os tripulantes tinham a obrigação de evitar os suicídios, que aconteciam principalmente com os escravos que sofriam de “banzo”, um estado de depressão psicológica. O termo “Banzo” é originário do “Quimbundo” (língua falada em Angola pelos Ambundos) “mbanza” (MENDONÇA, 1935), interpretado como terra natal ou aldeia. Ou seja, os cativos acometidos pelo “banzo” sentiam saudade de sua terra natal. Para Clovis Moura (2004) o,

Estado de depressão psicológica que se apossava do africano [...]. Geralmente os que caíam nesta nostalgia profunda, acabavam morrendo. Atribui-se tal estado depressivo à saudade da aldeia da qual provinham, de modo que o banzo atingia somente a primeira geração de escravos, isto é, aqueles diretamente importados da África (MOURA; 2004 p.63).

O “Banzo” atingia os cativos de todos os gêneros. Porém, para as mulheres a situação poderia ser ainda pior, já que elas, além da saudade da terra natal, sofriam estupros, praticados por membros da tripulação, o que aumentava ainda mais o quadro depressivo e a desilusão pela vida.

Uma característica marcante nos navios negreiros era a total falta de higiene, o que facilitava a proliferação de doenças que ocasionalmente poderiam aumentar o número de mortos, acarretando prejuízos para os traficantes. Essa característica, junto com as doenças e brigas que ocorriam dentro das embarcações, levou esses navios a serem chamados de tumbeiros ou cemitérios ambulantes, devido ao grande número de escravos que morria em seus porões, durante as travessias transatlânticas. Segundo Gomes (2019), 1.818.680 negros africanos morreram nos porões dos navios negreiros, durante três séculos e meio de tráfico entre a África e o Novo Mundo.

A fedentina dentro dos navios negreiros era tanta que às pessoas em terra sentiam o seu odor fétido, antes mesmo deles chegarem aos portos (GOMES, 2019). O frei Capuchinho Giuseppe Monari, que viajou a bordo de um negreiro de Luanda a Bahia, em 1720, descreveu assim a sua experiência.

É impossível descrever os choros, a confusão, o fedor, a quantidade de piolhos que devoraram aqueles pobres negros. Naquele barco havia um pedaço de inferno. Mas, como os que estão no inferno não têm esperanças de saída, eu me contentaria dizendo que era a nau do purgatório. (GOMES, 2019, p. 289).

A forma como os africanos escravizados eram tratados nos fétidos porões dos navios negreiros se assemelha muito ao tratamento dado aos gados, quando transportados nos caminhões das fazendas aos matadouros. As condições e os tratamentos dispensados aos africanos, dentro e fora das embarcações, eram desumanos e cruéis. Para o historiador David Eltis (2007),

Fosse qual fosse o caminho percorrido, as condições a bordo refletiam o status de excluídas que marcava as pessoas aprisionadas no porão. Nenhum europeu - fosse condenado, servo temporário ou imigrante livre miserável - jamais foi submetido ao ambiente que recebia o escravo africano típico no momento de embarque. Eram separados por sexo, mantidos nus, amontoados, sendo os homens acorrentados por longos períodos. Nada menos do que 26 por cento das pessoas a bordo eram classificadas como crianças, um índice do qual nenhuma outra migração anterior ao século XX sequer se aproximou. (ELTIS, 2007).

Todavia, mesmo com desvantagem numérica em relação aos tripulantes, existem relatos de resistências dos escravos a bordo dos negreiros, contrariando o que “foi difundido nos livros didáticos de História” por muitas décadas, sobre a passividade dos africanos frente à escravidão (GAVIOLI, 2017). Segundo ainda a autora:

No entanto, pesquisas acadêmicas apontam, por exemplo, que em Cabo Verde, um dos pontos importantes da rota dos navios negreiros no oceano Atlântico, a população desenvolveu técnicas de resistência ao domínio português utilizando o tambor como meio de comunicação. O tambor acabou sendo proibido pelos portugueses nesta região (GAVIOLI, 2017, p. 9).

Em três séculos e meio, o tráfico negreiro realizou aproximadamente 36 mil viagens transatlânticas transportando, somente para o Brasil, 4.9 milhões de escravos africanos. De acordo com o Slavevoyage.org, os modelos de navios negreiros mais utilizados entre 1817 e 1840 eram: o Brigue (navio à vela com dois mastros com velas quadradas e transversais), o Bergantim (navio estilo galé com dois mastros e velas redondas) e a Escuna (veleiro com vela de popa e de proa com dois mastros). Para Jaime Rodrigues (2008),

Embora os bergantins carregassem menos escravos devido as suas limitações espaciais, eles eram mais velozes – ou mais veleiros, como se dizia no linguajar marítimo do século XIX. Essa característica poderia ser um dos fatores que levava as embarcações de dois mastros (brigues, escunas, patachos, sumacas e bergantins) a estarem entre os tipos prediletos para o comércio negreiro no período da repressão mais intensa promovida pelos ingleses. (RODRIGUES, 2008, p. 173).

Com o passar dos anos, novas técnicas de higiene foram sendo aplicadas para deixar o ambiente do navio negreiro mais respirável, diminuindo assim a mortalidade do “estoque” de africanos escravizados. Por outro lado, capitães passaram a ganhar comissões consideráveis, que aumentavam gradativamente dependendo da média de mortalidade a bordo, o que fazia com que um capitão ganhasse, no século XVIII, entre R$ 500 mil e 750 mil (moeda atual) por viagem (GOMES, 2019). Por esse motivo, os capitães passaram a exigir que os tripulantes redobrassem os cuidados com a “mercadoria”, especificando horários para banhos e aplicação de remédios nas feridas dos escravos.

Embora lucrativo, o tráfico negreiro se estabeleceu com muita violência e com a exploração de vidas humanas, sendo o navio negreiro uma ferramenta primordial para o sucesso das empreitadas transatlânticas. Não por acaso, os comerciantes de escravos faziam investimentos vultosos para comprar novos navios ou realizar modificações nos já existentes, para aproveitar e tirar o máximo das embarcações e aumentar a sua vida útil.

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A Ironia dos Nomes

O tráfico negreiro era legitimado pelo Estado. Protegidos pela Lei, os proprietários de navios negreiros agiam sem nenhum tipo de escrúpulos, sendo dissimulados até na hora de nomear seus navios. O historiador Daniel Domingos da Silva ressalta que os nomes das embarcações era sempre uma prerrogativa dos proprietários e nunca dos capitães. Segundo Daniel, “Eles pensavam que estavam ajudando a resgatar a alma dos africanos para o reino de Deus, ou seja, trazendo eles de uma terra onde o paganismo imperava para a cristandade”. Segundo o SlavesVoyage.org, durante o período escravista foram realizadas aproximadamente 36 mil viagens, em centenas de navios negreiros diferentes. A seguir, alguns exemplos de navios negreiros, com os seus respectivos capitães. Lembrando que era comum um mesmo capitão realizar travessias no comando de navios negreiros diferentes.

Amável Donzela (1788-1806-Capitão: José de Azevedo Santos), Boa Intenção (1798-1802-Capitão: Marcos Guimarães Costa), Brinquedo dos Meninos (1800-1826-Capitão: Francisco Pires Carneiro), Caridade (1799-1836-Capitão: Antônio Fortunato), Feliz Destino (1812-1821-Capitão: Prudêncio Vital de Lemos), Feliz Dias a Pobrezinhas (1812-Capitão: Vitorino da Luiz), Graciosa Vingativa (1840-1845-Capitão: Joaquim Adrião Rosendo) e Regeneradora (1823-1825-Capitão: Bento José Francisco Fortes). Juntos, esses oito navios negreiros fizeram 65 viagens transatlânticas com 18.835 escravizados em seus porões. Desse montante, 17.341 desembarcaram no Brasil e 1.494 morreram durante a travessia.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Atlântico era o obstáculo a ser vencido, durante a diáspora africana. Para vencer esse obstáculo, a engenharia náutica da época idealizou aquele que seria a sua passagem de ida e volta para o Novo Mundo e posteriormente para o tráfico de pessoas, o navio negreiro.

Ao longo de cruéis três séculos e meio o comércio de pessoas abarrotou os porões de centenas de milhares de navios negreiros que circularam pelos Continentes: africano, europeu e americano. O porão do “tumbeiro”, como ficou conhecido o navio negreiro, foi à última visão para aproximadamente 1.818.680 negros escravizados (GOMES, 2019) que morreram por vários tipos de enfermidades causadas, principalmente pelas condições sanitárias e os maus-tratos a bordo; outros, sem condições psicológicas para enfrentar as vicissitudes da vida de servidão, cometeram suicídios; outros tantos, foram jogados ainda vivos ao mar, como foi o caso, por exemplo, dos 132 escravizados do “massacre de Zong”. O destino de todos os corpos, independente da causa mortis, era o mar, para o deleite dos tubarões e outros predadores (GOMES, 2019, p, 255).

Todavia, o escravizado africano era tão somente uma “mercadoria”, uma “coisa” que deveria ser preservado, pois, morto, o prejuízo era certo. Diante disso, muitos navios negreiros eram constantemente reformados, garantindo melhores condições sanitárias nos seus porões; além disso, os capitães passaram a ganhar comissões, que eram calculadas pelo número de cativos que chegassem vivos ao seu destino. Por esse motivo, os capitães passaram a exigir que os tripulantes redobrassem os cuidados com as “mercadorias”, especificando horários para banhos e aplicação de remédios em suas feridas.

Ao longo deste trabalho, nos deparamos com o martírio e com o extermínio de milhões de seres humanos, dos dois lados do Atlântico; debruçamo-nos em citações dramáticas e assustadoras do cotidiano a bordo dos porões dos navios negreiros, repouso final para uma grande parcela do tráfico entre o Continente africano e o Novo Mundo; identificamos as agruras que levaram muitos escravizados a cometerem suicídios, por não suportarem tamanha dor e sofrimento; caracterizamos as insalubridades dos navios negreiros, as doenças e o fim trágico de corpos sendo devorados pelos tubarões. Ao final deste artigo - muito resumido, confesso - a única certeza que temos é que é preciso sempre lembrar para não nos esquecermos do drama e das dores causadas pela maior de todas as chagas da humanidade.

BIBLIOGRÁFIA

ALVES, Castro. Navio negreiro. [S. l.]: Virtuais Books, 2000. Disponível em: http://www.terra.com.br/ virtualbooks/freebook/port/Lport2/navionegreiro.htm. Acesso em: 10 jan. 2002.

BARREIRO José C (Res), Companhia das Letras (E), História - Unesp (HUr), MACHADO Luciano V (Trad), Navio negreiro, O navio negreiro: uma história humana (T), REDIKER Marcus (Aut), Tráfico de escravos.

DUARTE, Sattamini Orlando. Contribuição ao estudo clinico- histórico do “banzo”. Revista Brasileira de História da Medicina. Volume 3. P, 75. 1952.

ELTIS, David. Um breve resumo do tráfico transatlântico de escravos. In: The Transatlantic Slave Trade Database. Voyages. A travessia do Atlántico. Disponível em: http://slavevoyages.org/assessment/essays# Acesso em: janeiro de 2017.

GAVIOLI, Janine Silva. TRÁFICO NEGREIRO: A DIÁSPORA DE UM CONTINENTE - Janine Silva Gavioli. – 2017. 49 P.

GOMES. Laurentino. Escravidão – do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Vol. I. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

MENDONÇA, Renato. A Influência Africana no Português no Brasil. São Paulo: Nacional, 1935.

MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil São Paulo: Edusp, 2004. p. 63. (Banzo).

REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 456 p.

RODRIGUES, Jaime. De costa a costa. Escravos e tripulantes no tráfico negreiro. (Angola - Rio de Janeiro, 1780-1860). Campinas, 2008. Tese de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas.

The Trans Atlantic Slave Trade Database, em slavevoyages.org

 



 

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