Série Escravidão: A Doutrina dos Jesuítas e as Punições aos Escravos

📷Negro no tronco © Jean Baptiste Debret
🏠Parnaíba (PI)

Artigo de Walter Fontenele (Graduado Antropologia -UESPI).

Este é o terceiro artigo da Série Escravidão. Recomendamos a leitura dos artigos anteriores: 

Série Escravidão: O Fenômeno da Escravidão no Brasil entre os Séculos XV E XIX;
Série Escravidão: A Reprodução Sistemática de Escravos em Cativeiro.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo caracterizar a participação dos Jesuítas no processo punitivo dos escravos no Brasil Colônia, durante o século XVIII. Assim, o artigo se baseia em três grandes nomes pertencentes à Ordem Católica da Companhia de Jesus e suas obras literárias: André João Antonil (“Cultura e Opulência do Brazil, por suas drogas e minas”), Benci de Armirio (“Economia cristã dos senhores no governo dos escravos”) e Manuel Ribeiro Rocha (“Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado”). Para atingir o objetivo principal do artigo foi utilizada a metodologia de pesquisa exploratória com caráter qualitativo, tendo como procedimentos a leitura e releituras documentais e bibliográficas de autores reconhecidos pela historiografia mundial. Conclui-se que as recomendações dos Jesuítas tinham a função de aliviar o sofrimento dos escravos, mas, em nenhum momento, impedir as punições. Vimos também que nenhum delito poderia ser perdoado pelo senhor de escravo, pois, caso isso acontecesse, quem estaria errando era o senhor, que perderia a chance de educar o faltoso, através do castigo e do exemplo para os outros cativos.

Palavras-chave: Escravidão, Jesuítas, Punições, Senhores de Escravos.

1. INTRODUÇÃO

Para o castigo ser bem ordenado [...], não se deve ministrar logo que o escravo fizer o erro ou cometer o delito; é necessário algum intervalo maior ou menor, conforme a gravidade do caso, para atender às circunstâncias ocorrentes; e a razão é porque a deformidade do erro, ou do delito, naturalmente altera os espíritos, e alterados estes, se comove logo a ira [...], e o castigo não se deve ministrar com cólera e furor, senão com brandura e caridade e, por isso, é necessário esperar que os espíritos sosseguem e que a turbação pela cólera se serene (ROCHA, 2017, p, 140).

O texto em epigrafe, do Padre Jesuíta, Manoel Ribeiro Rocha, sugere como os senhores de escravos deveriam punir os seus cativos que, por acaso, cometessem alguns erros ou delitos. Para o religioso, a punição era permitida, só que deveria ser aplicada de forma moderada, evitando assim dilacerações e a morte do escravo. A historiografia da escravidão nos revela que os Jesuítas chegaram inclusive a elaborar um manual de orientação para a aplicabilidade das punições, aos escravos rebeldes ou criminosos.

No período de três séculos e meio de sistema escravista, muitos escravos - indígenas, e depois africanos - sofreram nas mãos dos seus algozes, os capitães do mato e os senhores de escravos. À vida de sofrimento dos escravos africanos tinha inicio na sua própria terra natal. Lá eles eram perseguidos, capturados, deixados em barracões por semanas em condições insalubres, embarcados nos navios negreiros e, em muitos casos, torturados, das mais diversas formas e com uso de vários instrumentos.

Os Jesuítas eram religiosos ligados a Companhia de Jesus, ordem da Igreja Católica criada com o objetivo principal de disseminar a fé cristã pelo mundo. Para cumprir suas missões, os Jesuítas eram educados numa severa doutrina de privações, preparando-os assim para enfrentar as adversidades, que seriam impostas pelas missões. No Brasil, os primeiros Jesuítas chegaram em 1.549, tendo como objetivos: desenvolver a educação, livrar os indígenas escravizados das mãos dos colonizadores e “salvar” suas almas, transformando-os em cristãos. Dentre os Jesuítas - e suas obras - que estiveram no Brasil e se destacam na historiografia escravista estão: André João Antonil (“Cultura e Opulência do Brazil, por suas drogas e minas”), Benci de Armirio (“Economia cristã dos senhores no governo dos escravos”) e Manuel Ribeiro Rocha (“Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado”).

Ao mesmo tempo em que tinham a incumbência de pacificar e livrar os indígenas do cativeiro, os Jesuítas foram os responsáveis pela fundação de algumas das primeiras instituições de ensino do Brasil colonial. Todavia - apesar da contribuição da Companhia de Jesus a educação - alguns autores são críticos com relação à qualidade paternalista da educação implantada pelos Jesuítas. É o caso, por exemplo, do educador, Moacir Gadotti (2022),

[...] Os jesuítas nos legaram um ensino de caráter verbalista, retórico, livresco, memorístico e repetitivo, que estimulava a competição através de prêmios e castigos. Discriminatórios e preconceituosos, os jesuítas dedicaram-se à formação das elites coloniais e difundiram nas classes populares a religião da subserviência, da dependência e do paternalismo, características marcantes de nossa cultura ainda hoje. (GADOTTI, 2022, p, 31).

Apesar das criticas de (GADOTTI, 2022) ao ensino verbalista, memorístico e repetitivo dos Jesuítas, outros autores adotam uma posição mais mediana, com relação ao ensino introduzido no Brasil Colônia pelos Jesuítas. É o caso de José Ricardo Pires de Almeida (1989) que esclarece que é,

Incontestável que os jesuítas foram os primeiros educadores da juventude brasileira e foram também os pioneiros da civilização do país, onde lançaram os fundamentos de nossos edifícios sociais, as bases segundo as quais se formou nosso espírito público (ALMEIDA, 1989, p. 25).

É notório que, apesar de suas limitações, a educação jesuítica introduzida no Brasil colonial foi um avanço que suplantou as praticas educacionais medievais, introduzindo as primeiras bases em direção à pedagogia moderna e fugindo do método escolástico (DURKEIN, 1952).

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Os Jesuítas foram expulsos do Brasil e de Portugal por Sebastião José de Carvalho e Melo (Superministro do Rei D. José I, que entrou para a história do Brasil como Marques de Pombal), em 1.759, depois do atentado ao Rei José I. Todavia, a tentativa de regicídio foi apenas o estopim para o inicio do processo de expulsão, já que os Jesuítas viviam em pé de guerra com os colonizadores, por conta da escravização dos indígenas. A expulsão, na visão de Marques de Pombal, propiciaria maior domínio do Estado sobre a sociedade, o que facilitaria que inovações econômicas, já desenvolvidas na Inglaterra e na Áustria, fossem aplicadas no Reino Português e em suas colônias, resolvendo assim os seus problemas estruturais (RODRIGUES, 2018).

Com o intuito de avaliar e compreender melhor o fenômeno da escravidão e seus métodos punitivos foi utilizado na pesquisa o método exploratório, com caráter qualitativo, com o uso de fontes secundárias e com a leitura de documentos antigos, tese de mestrado e doutorado, livros e periódicos. Assim sendo, a pesquisa terá como base obras de historiadores brasileiros e estrangeiros que já pesquisam o tema há várias décadas, como por exemplo, Laurentino Gomes, Moacir Gadotti, David Eltis, entre outros. O escopo da pesquisa é o século XVI e o século XVIII, período que correspondeu ao ápice da escravização de pessoas no Novo Mundo.

O presente trabalho está dividido em três capítulos: No primeiro capítulo é realizado um pequeno histórico sobre a chegada e a expulsão dos Jesuítas ao Brasil, revisitando alguns autores e obras sobre a educação implantada no Brasil colônia pela Companhia de Jesus; no segundo capítulo, dissertaremos sobre as punições utilizadas pelos colonizadores para conter a rebeldia dos escravos e a doutrina punitiva, apregoada pelos Jesuítas; no terceiro e último capítulo são apresentadas às considerações finais da pesquisa.

2. A DOUTRINA PUNITIVA DOS JESUÍTAS

Durante três séculos e meio o fenômeno da escravidão produziu muitas e muitas cenas hediondas de desrespeito à vida e a humanidade. Perseguições, capturas, aprisionamentos, sofrimentos e mortes são marcas registradas do período mais vergonhoso da história da humanidade. Todavia, entre uma etapa e outra, às vitimas do processo escravista sofriam punições, que iam de sessões de chicotadas até sessões de torturas, que nos faz relembrar as barbáries da idade média e da inquisição.

As punições impostas aos escravos eram institucionalizadas pelas Leis e fazia parte do governo econômico dos senhores de escravos (LARA, 1988, p. 116). Mas, o poder dos senhores sobre os seus escravos não visava destruí-los, mas, sim obter uma melhor produção, retirando suas forças de reação contra o sistema escravista (SANTOS, 2013, p. 2). Para a historiadora Silvia Hunold Lara (1988),

O reconhecimento social da prática dos castigos de escravos, no entanto, esbarrava na questão da justiça e da moderação, pois somente aplicado nessas condições corresponderia ao que dele se esperava: a disciplina e a educação. A punição injusta e excessiva provocava, por seu turno, descontentamento e revolta. Punir o escravo que houvesse cometido uma falta, não só era um direito, mas uma obrigação do senhor. Isso era reconhecido pelos próprios escravos, mas não quer dizer que os castigos eram aceitos, ou seja, por intermédio dos castigos, caberia a tarefa de educar seus cativos para o trabalho e para a sociedade (LARA, 1988, p. 116).

As punições visavam à manutenção do sistema escravista e o controle dos senhores sobre os escravos, sendo tais aplicações punitivas previstas na Lei e com a conivência da Igreja que, em 1.633, fez recomendações de como deveriam ser as punições aos escravos infratores.

[...] depois de bem açoitado, o senhor mandará picar o escravo com navalha ou faca que corte bem e dar-lhe com sal, sumo de limão e urina e o meterá alguns dias na corrente, e sendo fêmea, será açoitada a guisa de baioneta dentro de casa com o mesmo açoite (LARA, 1988, p. 74-75).

A Igreja Católica participou ativamente de todas as etapas do processo escravista e tinha a necessidade de manter o sistema em pleno funcionamento, pois precisava da mão-de-obra escrava para realizar a manutenção de suas fazendas e de suas instituições, fundadas no Brasil colônia pela Companhia de Jesus.

A Companhia de Jesus, apesar de ter sido contra a escravização dos indígenas, como visto na introdução deste artigo, tinha um papel relevante nas operações do fenômeno escravista em Portugal e no Brasil colônia. A luta contra a escravização dos indígenas não era humanista, já que os Jesuítas mantinham indígenas em regime de escravidão, em suas Missões.

Para manter o funcionamento do regime escravista e evitar mortes durante as muitas sessões de punições e de torturas, os Jesuítas criaram várias recomendações (manual) para os senhores de escravos, aplicarem durante as punições. Manuel Ribeiro Rocha, advogado e padre português, publicou o livro “Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado”, em 1.758, em Portugal. Ribeiro Rocha foi um dos muitos Jesuítas que participaram da doutrina de punições dos negros escravizados. Segundo ele,

Para o castigo ser bem ordenado [...], não se deve ministrar logo que o escravo fizer o erro ou cometer o delito; é necessário algum intervalo maior ou menor, conforme a gravidade do caso, para atender às circunstâncias ocorrentes; e a razão é porque a deformidade do erro, ou do delito, naturalmente altera os espíritos, e alterados estes, se comove logo a ira [...], e o castigo não se deve ministrar com cólera e furor, senão com brandura e caridade e, por isso, é necessário esperar que os espíritos sosseguem e que a turbação pela cólera se serene (ROCHA, 2017, p, 140).

Ribeiro Rocha se colocava contra as severas punições a que os escravos eram submetidos, recomendando que as punições fossem sempre aplicadas com os ânimos serenados, evitando dilacerações graves ou até mesmo a morte do escravo. Na mesma publicação ele esclarece que “Se o escravo merecer três dúzias castigue com duas tão somente; e se merecer duas, basta que se castigue com dúzia e meia; e merecendo uma dúzia, comute-se e troque-se o castigo pela palmatória” (ROCHA, 2017, p. 141). Apesar de criticar as punições dilacerantes, Ribeiro Rocha deixa claro que o senhor tem o direito e a obrigação de punir os seus escravos, pelas suas falhas.

[...] não há dúvida de que devem os possuidores destes cativos corrigir e emendarlhes os seus erros quando tiverem já experiência de lhes não ser bastante para esse efeito a palavra, porque se o escravo for de boa índole, poucas vezes errará, e para emenda delas bastará à repreensão; mas se for protervo, ou travesso, continuadamente obrará mal e será necessário, para corrigir, que a repreensão seja acompanhada e auxiliada também com o castigo. Nesta conformidade, permitem as leis humanas a correção, emenda e castigo dos servos, dos escravos e dos domésticos: castigos proporcionais às suas faltas, a fim de que aqueles que não foram levadas a adotar uma vida honesta pelos bons exemplos domésticos, sejam constrangidos a fazê-lo pela correção (ROCHA, 2017, p. 132).

Para o Padre, Manuel Ribeiro Rocha, as punições aos escravos eram permitidas, desde que realizadas com a “dosagem” correta e que, ao findar os açoites, as feridas não fossem cauterizadas com pingos de lacre derretido, classificando os causadores desses excessos de “monstros da soberba” (ROCHA, 2017, p. 139-140).

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Outro Jesuíta que esteve no Brasil no período escravista e que também publicou uma obra relevante dos fatos ocorridos na colônia portuguesa foi João Antônio Andreoni que, em 1.711, lançou o livro “Cultura e Opulência do Brasil, por suas Drogas e Minas” utilizando o pseudônimo de André João Antonil. A obra foi dedicada aos colonizadores possuidores de fazendas, minas e que cultivavam, principalmente, o açúcar e o tabaco.

Assim como todos os Jesuítas que estiveram no Brasil durante o século XVIII, Antonil também tinha preocupações com as punições aplicadas pelos senhores nos seus escravos, apesar, dele próprio, ser também senhor de escravos. Em sua obra “Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares, Volume I” Laurentino Gomes esclarece que,

No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três Ps, a saber: pau, pão e pano, resumiu o Jesuíta André João Antonil. Todas as três letras, segundo ele, faziam parte do repertório dos deveres dos senhores de escravos. O primeiro P, de pau, referia-se aos castigos, que, em sua opinião, deveriam ser aplicados sempre que merecido. Os outros dois eram relativos à obrigação de prover os cativos com alimentos (Pão) e roupas e abrigos (pano) adequado. (GOMES, 2019, p. 311).

Para Antonil, era necessário, assim como para Ribeiro Rocha, estabelecer limites para que as punições não se transformassem em apenas uma crueldade pura, simples e desumanas.

Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente nas barrigas das mulheres, que andam pejadas, nem dar com pau nos escrayos, porque na cólera se não medem os golpes, e podem ferir mortalmente na cabeça a hum escravo de préstimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo (ANTONIL, 1711, p. 22).

Segundo ainda o autor,

Repreendê-los, [os escravos], e chegar-lhes com hum cipó ás costas com algumas varadas, é o que se lhes pode, e deve permitir para ensino. Prender os fugitivos, e os que brigarão com feridas, ou se embebedárão, para que o senhor os mande castigar como merecem, é diligencia digna de louvor. Porém, amarrar, e castigar com cipó até correr o sangue, e meter em tronco ou em uma corrente por meses, (estando o senhor na cidade), a escrava que não quis consentir no pecado, ou ao escravo que deu fielmente conta da infidelidade, violência, e crueldade do feitor, que para isso armar delitos fingidos, isto de nenhum modo se ha de sofrer; porque seria tudo um lobo carniceiro, e não hum feitor moderado; e cristão (ANTONIL, 1711, p. 22).

Antonil, como testemunha ocular e partícipe das barbáries do cativeiro de seres humanos, procurou em sua obra - já citada - definir critérios para a aplicabilidade das punições aos escravos faltosos, tendo como base a axiologia cristã. A punição era tolerada, desde que moderada, para pacificar os escravos e perpetuar o poder dos senhores diante de seus escravos. Além da preocupação com a severidade das punições aplicadas aos escravos, Antonil recomendava aos “senhores de escravos lhe dessem algumas liberdade, como a de cultivar suas próprias roças e hortas, e ter seus momentos de folguedos” (GOMES, 2019, p. 310).

O italiano, Jorge Benci de Armirio, foi outro Jesuíta que ganhou destaque no Brasil com seu livro “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”, escrito em 1.700, na Bahia, e publicado cinco anos depois na Itália.

Benci inicia sua obra tentando justificar a escravidão a partir de fundamentos religiosos, aproximando o fenômeno escravista com o pecado original bíblico, principio de todos os males da humanidade. “O pecado, pois foi o que abriu as portas, por onde entrou o cativeiro no mundo”, gerando as guerras, tendo os vencedores o direito de escravizar os perdedores (BENCI, 1705, p. 3-4).

Partindo de preceitos religiosos e aristotélicos, Benci institucionaliza as punições como uma forma de educação e de aprendizado, evitando assim que os escravos mais revoltados voltem a pecar novamente.

Para trazer bem domados e disciplinados os escravos são necessários que o senhor lhes não falte com o castigo, quando eles se desmandam e fazem por onde o merecerem. Flagellum equo, & camus asino, & virga in dorso imprudentium (Um chicote para um cavalo, e uma palha para um burro, e uma vara nas costas dos incautos), diz Salomão nos seus Provérbios. Assim como o ginete necessita da espora e o jumento do freio, para serem governados; assim os imprudentes e mãos necessitam da vara e do castigo, para que sejam morigerados como devem, e não faltem à sua obrigação. (BENCI, 1705, p. 123-124, grifo nosso).

Seguindo no mesmo raciocínio, Benci finaliza o paragrafo culpando os próprios escravos pelas punições sofridas, já que eles são indolentes e revoltados com o cativeiro.

[...] Mas, tornando eu tanto a meu cargo defender a causa dos escravos contra os senhores, que os maltratam, parece que não devia aprovar que se executassem neles gênero algum de castigo, senão abominar como cruéis e inumanos os são os Senhores, que de qualquer modo os castigam. Assim havia de ser, se os escravos fossem de condição tão branda e bem domada, que se acomodassem ao que é razão. Mas como eles ordinariamente são voluntários, rebeldes e viciosos, não é possível que saiam bem disciplinados sem a disciplina sem o castigo (BENCI, 1705, p. 123-124).

Benci faz uma mescla do direito jurídico com o teológico nas suas recomendações acerca das punições aos escravos. Era importante um pré-julgamento por parte do senhor quando houvesse algum erro ou delito de algum dos seus escravos, para que a punição fosse de igual teor que o erro, sempre deixando claro que o senhor não poderia, em hipótese alguma, deixar de aplicar a punição devida aos infratores.

Ouvido em fim o escravo, e constando que realmente tem culpa; não ha dúvida que faltaria gravemente o senhor á sua obrigação faltando-lhe com o castigo, e cometeria um pecado, que nas balanças de Deus igualmente pesa, como se o castigasse sendo ele inocente: [...] Igualmente aborrece Deus aquele que absolve do castigo a hum mão, como aquele que condena á pena a um inocente, sem culpa. E ainda que, estas palavras vão diretamente a ferir os Julgadores, que pervertendo as regras da Justiça, absolvem culpados e condenam inocentes; não deixarão, contudo de quadrar bem aos senhores, que não dão o castigo aos escravos criminosos, e castigam aos que não tem crime. Huns, e outros aborrece Deus igualmente: (BENCI, 1705, p. 137).

Benci e os outros Jesuítas, mesmo com algumas pequenas divergências entre si, tinham o senhor de escravos como o exemplo de patriarca e cristão, que deveria punir a todas as falhas ou delitos dos seus escravos, sem exceções, mas que essas punições precisariam seguir um nível aceitável de tolerância, evitando assim lesões graves ou a morte do cativo penalizado. Castigar era um ato que deveria ser feito com parcimônia e sem fúria, sendo que os escravos só eram castigados por não se adequarem ao funcionamento do sistema escravista.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Companhia de Jesus e seus Jesuítas tiveram papel de relevância no desenvolvimento da América portuguesa, com a fundação de Missões que abrigava os indígenas, livrando-os da escravidão dos comerciantes e traficantes de escravos, além de desenvolver a educação no Brasil colonial. Mas, como vimos no decorrer deste artigo, apesar de livrar os indígenas das mãos dos traficantes, os Jesuítas foram ativos no fenômeno escravista nos Continentes: africano, americano e europeu, durante o século XVIII.

As interferências dos Jesuítas no processo escravista causou descontentamento dos comerciantes de escravos, que insistiam na captura e escravização de indígenas. Essas interferências, somada com a suposta participação da Companhia de Jesus no atendado contra o rei de Portugal, D. José I, desmobilizaram as ações dos Jesuítas na colônia portuguesa, tendo com desfecho a expulsão de todos do Brasil e de Portugal, no ano de 1.759, por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo (Marques de Pombal).

Mesmo sendo partícipes do processo escravista, os Jesuítas pregaram, através de livros e de recomendações, uma melhor aplicabilidade das penas aos escravos, que cometessem erros ou delitos. Benci, por exemplo, recomendava que os senhores ouvissem, antes da aplicação das penas, os escravos faltosos, para que as punições fossem do mesmo teor que as infrações, mas isso dificilmente acontecia e os escravos eram punidos com grande rigor e fúria pelos feitores. A aplicação das punições não se restringia ao estalar do chicote e das dezenas de centenas de chibatadas, sendo, às vezes, aplicadas com o uso de instrumentos medievais de torturas, o que poderia deixar o escravo invalido ou até a causar a sua morte.

As chibatadas e as torturas eram, na visão dos Jesuítas, um mal necessário para conter a rebeldia, os delitos, as tentativas de fugas e para que os escravos se conscientizassem de sua condição de cativo e servo de um senhor, condição essa institucionalizada pela Lei, pela sociedade e pela Igreja Católica e suas Ordens.

BIBLIOGRÁFIA

ALMEIDA, J. R. P. de História da Instrução Pública no Brasil (1500-1889). Trad. Antônio Chizzotti. São Paulo: EDUC; Brasília, INEP/MEC, 1989.

ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa: Officina Real Deslandesiana, 1711.

BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores nodos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1705.

DURKHEIM. Émile. Educação e sociologia. Trad. Lourenço Filho. 3ª. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1952.

GADOTTI, M. História das Ideias Pedagógicas. 8. Ed. São Paulo: Ática, 2002.

GOMES. Laurentino. Escravidão – do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Vol. I. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

LARA, S.H. "O castigo exemplar" em campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado: discurso teológico-jurídico em que se propõe o modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a uma e outro foro, os pretos, cativos africanos e as principais obrigações que concorrem a quem deles se servir. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758.

Santos, V. (2013). TÉCNICAS DA TORTURA: PUNIÇÕES E CASTIGOS DE ESCRAVOS NO BRASIL ESCRAVISTA. ENCICLOPEDIA BIOSFERA, 9(16). Recuperado de HTTPS://conhecer.org. br/ojs/index.php/biosfera/article/view/3538.

Por Walter Fontenele (antropólogo)

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