Cultura: O Camurupim nosso de cada dia
📷Pescadores da Pedra do Sal voltando do mar. ((c)) Walter Fontenele |
Na pesca artesanal realizada na Comunidade da Pedra do Sal existem
várias formas de manejos e de apetrechos (rede de emalhes, linha, anzol e arpão
e espinhel). Cada um desses manejos possui características que os diferenciam
uns dos outros, mas iremos tratar aqui, especificamente do manejo da pescaria
do Camurupim, que é realizada à moda tradicional com a utilização de anzol,
linha e arpão. É certo que o manejo com anzol, linha e arpão pode ser usado
para a captura de quase todas as espécies, todavia, por vários motivos, os
pescadores adotaram esse manejo específico para a captura do Camurupim, uma
espécie de peixe muito apreciado pelo mercado e pelos pescadores, devido ao
valor comercial acima da média que a espécie alcança.
O Camurupim é um peixe da família “Megalopidae”
conhecido cientificamente como “Megalops Atlanticus” que habita canais de mangues e águas
fluviais que desembocam no mar. No Brasil ICMBIO (2019) a espécie é
popularmente conhecida como Pema, Amaripim, Camburupu, Cangôa, Cangurupi,
Pirapema e Pomboca. Nos Estados Unidos da América é o famoso Tarpon, uma
espécie muita apreciada, principalmente pelos amantes da pesca esportiva. O
Camurupim tem traços marcantes: corpo alongado (podendo chegar a mais de 2
metros e a pesar mais de 150 quilos), mandíbula inferior saliente e resistente
(o que dificulta a fixação do anzol), dentes finos e serrilhados, e grandes
escamas prateadas (usadas em algumas regiões como matéria prima para a
confecção de artesanatos).
O Camurupim é uma espécie de suma importância como recurso pesqueiro no litoral do Estado do Piauí (Parnaíba, Luís Correia, Cajueiro da Praia) e do Ceará (Bitupitá). A grande procura pelo mercado consumidor e o bom retorno financeiro que a espécie gera aos pescadores colocou a espécie em risco de extinção pelo “Livro Vermelho da Fauna Brasileira”. (Portaria 455) (BRASIL, 2018; BRASIL, 2019). Segundo o ICMBIO (2018), o Camurupim é uma:
Espécie encontrada em baías, estuários e áreas rasas da plataforma continental, no Atlântico ocidental e oriental. Na porção ocidental, ocorre desde os Estados Unidos da América até a Argentina. No Brasil, a espécie é intensamente pescada na região norte e nordeste, onde é mais frequente e abundante. (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. 2018. Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção. Brasília: ICMBIO. 4162 p.).
Na Pedra do Sal a técnica para a captura do
Camurupim é rudimentar, sendo usado apenas linha, anzol e arpão o que dificulta
ainda mais o êxito das pescarias em alto mar. O Senhor Antônio do Nascimento é
um dos pescadores de Camurupim mais experientes do Delta do Rio Parnaíba e traz
nas mãos as marcas da luta quase diária com o “Gigante do delta”. Segundo ele:
O Camurupim é um peixe andarilho que anda muito e percorre todo o Nordeste. Aqui na Pedra do Sal nós pescamos usando apenas anzol, linha de mão e arpão, mas em Bitupitá (CE) eles pescam com o uso de “currais-de-pesca”. Há 50 anos, lá pras bandas de Belém só se pescava Camurupim com o uso de rede, mas de 35 anos pra cá esse tipo de pesca foi considerado predatória. A pesca do Camurupim é uma pesca de manejo difícil, porque é uma pesca de temporada. Vento forte e muita tribulação fazem o pescador muitas vezes desistir da pescaria. O risco sempre existe e, é grande, mas nós pescamos o Camurupim porque ele é um prato cheio na mesa do pescador que pega, na mesa dos seus companheiros e das famílias de todos; é o almoço, a janta e às vezes até a despesa do mês todo. É prazeroso, é uma herança que meu pai me deixou e eu passei pra alguns de meus filhos. Não é uma pescaria qualquer. (Antônio, 66).
A pescaria do Camurupim não “é uma pescaria qualquer”, como bem frisou o
pescador. O manejo mantém características de ancestralidade dos povos nativos,
mas são as reminiscências de um passado mais recente que caracterizam o
Camurupim e o seu manejo como uma identidade cultural para os pescadores da
Pedra do Sal. Na Comunidade, só uma pequena minoria dos pescadores não são
membros de famílias que labutaram na pesca artesanal, sendo a grande maioria
pertencente à família de várias gerações de trabalhadores do mar. Para Ferreira
& Bittar (2000),
A ancestralidade entendida como o traço constitutivo de meu processo identitário, que é herdado e que vai além de minha própria existência. O traço herdado se soma aos demais fatores formativos no processo identitário (...). Assim sendo, não se considera a identidade como um bloco homogêneo e imutável, mas como um processo aberto e em permanente construção, no qual dialogam vários fatores determinantes, escolhidos ou não, em contraste com a alteridade com que nos relacionamos (FERREIRA & BITTAR, 2000, p. 205).
Destarte, é preciso reconhecer a importância identitária que o manejo da pesca do Camurupim representa para essa população-tradicional, não apenas levando-se em conta fatores econômicos, já que a espécie tem valor comercial muito acima das demais espécies capturadas na região, mas, principalmente, pela tradição cultural que essa especificidade da pesca artesanal representa para a história desses pescadores. Todavia, é imprescindível o entendimento de que grupos de populações - diferenciados culturalmente - desenvolvem, ao longo do tempo, técnicas e práticas para se apropriar do conjunto do saber-fazer propiciados pela simbiose com a natureza, que é o caso dos pescadores artesanais.
A pescaria do Camurupim marca a vida da comunidade da Pedra do Sal, sendo os traços simbólicos da atividade passados de geração a geração, primordial para formação do pescador artesanal. A interação com o mar e sua ictiofauna vai criando significado que irá integrar o ethos do pescador, atualizando as práticas do manejo da pescaria de uma geração a outra.
A pesca do Camurupim praticada de forma
artesanal é uma tradição da Comunidade da Pedra do Sal que consolidou o
sentimento de pertencimento no grupo de pescadores, principalmente baseado no
parentesco ou compadrio. De acordo com Ramalho (2006),
Ingressar no mundo da pescaria desenvolvida artesanalmente por um grupo de trabalho embarcado é entrar num terreno frequentado por pessoas próximas, por gente conhecida, que já compunha o cotidiano desses indivíduos, facilitando os acordos a serem construídos no processo de trabalho, principalmente quando se está no ambiente aquático (RAMALHO, 2006, p. 139).
Portanto, a família é Durkheim (2007) o
fato social de unificação dessa população-tradicional ao longo do tempo.
Segundo o pescador Pedro, que tem um irmão como membro da sua tripulação, “na
pesca e no trabalho em alto mar o mais importante, até mesmo mais do que saber
trabalhar, é confiar nas pessoas que estão com você”. Segundo o pescador
Batistinha, “desde que eu me entendo por gente que as coisas funcionam assim,
principalmente na pesca do Camurupim”. Para Ramalho (2006, p. 139), “A família é
o alimento e o fortalecimento dos laços de solidariedade para se enfrentar as
desventuras na pesca e na vida”.
Ao longo do tempo e por vários motivos o
manejo da pesca do Camurupim foi sofrendo mudanças significativas. O uso da
rede de emalhe, muito utilizado na captura do Camurupim em todo o Nordeste, foi
substituído por técnicas rudimentares (anzol, linha e arpão), atendendo a
Portaria MMA 445 (2014) que proibiu a pesca da espécie com rede em toda a
extensão da Área de proteção Ambiental do Delta do Rio Parnaíba (APA).
A Área de Proteção Ambiental do Delta do Rio Parnaíba compreende
comunidades dos Estados do Piauí, Maranhão e Ceará que estão sob a vigilância
do Instituto do Meio Ambiente (IBAMA) e do Instituto Chico Mendes de
Biodiversidade (ICMBIO). No intuito de proteger as espécies ameaçadas esses
órgãos promovem encontros com membros das citadas comunidades para a
apresentação de palestras e realização de oficinas sobre a melhor maneira de
conduzir o manejo na pesca artesanal em toda a região. Todavia, as questões
relacionadas à proteção e a proibição do manejo de algumas espécies traz
divergências entre os membros das comunidades e os gestores dos órgãos
responsáveis. A principal divergência entre os órgãos fiscalizadores e os
pescadores é exatamente a forma de manejo que é utilizado na Pedra do Sal para
a pesca do Camurupim (linha, anzol e arpão) e o manejo realizado em outras
localidades pertencentes à APA, principalmente a pesca com o uso de “currais”
utilizada na Comunidade de Barroquinha, no Estado do Ceará.
As espécies são analisadas de acordo com cinco critérios de ordem
quantitativa e qualitativa que classificam o risco de extinção de cada tipo de
pescado. Segundo o ICMBIO/MMA (2018),
Por convenção, a notação das categorias traz o nome escrito em português e a sigla original em inglês entre parênteses. São consideradas espécies ameaçadas, de acordo com a Portaria MMA nº 43/2014, as espécies categorizadas como Vulnerável (VU), Em Perigo (EN), Criticamente em Perigo (CR) e Extintas na Natureza (EW). (ICMBIO, 2018, p.49)
O Camurupim é uma espécie ameaçada de extinção, enquadrada como vulnerável (VU), com uma redução de população (A2bd) “observada, estimada, inferida ou suspeitada de ter ocorrido no passado, sendo que as causas da redução podem não ter cessado” (ICMBIO, 2018, p. 227).
Todavia, os pescadores da Pedra do Sal contestam os números apresentados
pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade na área do Delta do Rio Parnaíba.
Segundo os pescadores, o manejo da pescaria do Camurupim utilizado na
Comunidade não apresenta risco de sobrepesca ou extinção de espécies.
A nossa discordância com o pessoal da (APA) é que eles querem encaixar a proibição da pesca do Camurupim aqui na nossa região, mas deixou de fora da área de proteção a praia de Bitupitá, no Ceará. A nossa pesca de anzol e linha não preda, já em Bitupitá eles utilizam “currais”. Na pesca de “currais” não se pesca, se pega. Se cair 100 peixes dentro do “curral” os 100 são mortos. (Antônio, 66)
A pesca com a utilização de “currais” é comum no Nordeste brasileiro, sendo uma técnica iniciada pelos povos indígenas e atualizada depois pelos portugueses (DIEGUES, 2004).
Os “currais” são conhecidos no Sudeste com o nome de “cerco”, sendo
estruturas feitas de várias varas de madeira (mourão) preenchidas com telas de nylon entre elas e afixadas próximas da
praia, num local de mar tranquilo. (BARROS; FABIANO, 1995).
Os pescadores do Delta do Rio Parnaíba vêm ao
longo do tempo mantendo contato com os órgãos fiscalizadores para sanar dúvidas
e apresentar soluções para os conflitos provenientes do manejo da pesca, da
ocupação desordenada da região e das ocupações de espaços públicos por empresas
privadas. Nesse sentido, os pescadores chegaram a discutir um projeto de manejo
sustentável com o ICMBIO e com a Universidade Federal do Piauí (UFPI), hoje
Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPAR). De acordo ainda com o pescador,
Esse projeto, se tivesse ido adiante, seria em parceria com os pescadores do Piauí, Maranhão e Ceará e devolveria os filhotes que ficam presos nas lagoas, ao mar. Muitos filhotes de Camurupim e, de outras espécies de bom valor comercial, morrem na vazante ao ficarem presas e não conseguirem retornar ao mar. Essas lagoas enchem e secam ao sabor da maré, portanto não é um local que mantenha a sobrevivência dos peixes por muito tempo. Eles alegaram falta de verbas para tocar o projeto pra frente (Antônio, 66).
Essas lagoas são berçários para muitas espécies de peixes capturadas na região.
Um desses peixes é o Camurupim, que quando filhote recebe o nome de Pema e na
sua vida adulta é o principal alvo de captura dos pescadores. Esse projeto
poderia ajudar na preservação de muitas espécies que são capturadas por
moradores ou mortas pelos predadores, como os urubus, por exemplo. O projeto
foi de iniciativa dos pescadores da Pedra do Sal, mas segundo os órgãos
governamentais, não havia dotação orçamentária que viabilizasse sua execução.
Segundo ainda o pescador, “A ideia era boa só que os homens falaram que não
tinha dinheiro para tocar nem comprar os carros traçados e que sem verba era
impossível levar adiante o projeto”.
A aventura da pesca do Camurupim na Pedra do Sal termina com a chegada
das canoas à praia, momento que é aguardado com ansiedade por membros da
Comunidade, por turistas e por atravessadores, ávidos por bons peixes e bons
preços. Quando as Canoas apontam no horizonte todos ficam na expectativa para
ver de perto o Camurupim, o “gigante do Delta”. Mas, a expectativa às vezes
vira frustação, pois nem sempre os pescadores conseguem capturar o cobiçado Camurupim.
Todavia, a chegada dos homens do mar é um momento que se tornou uma tradição ao
longo das décadas nesse pequeno recorte espacial do litoral do Estado do Piauí.
A pesca artesanal na Comunidade da Pedra do Sal é uma atividade de
subsistência e de pequena escala comercial. Os melhores espécimes, dentre eles
o Camurupim, atinge um bom valor comercial, sendo comercializado ali mesmo na
praia para populares, para atravessadores ou para representantes de
restaurantes da cidade de Parnaíba. Na falta do Camurupim outras espécies são
bem-vindas: Pescada Amarela (Cynoscion acoupa), Robalo (Centropomus
undecimalis), Cará do Alto (Pterophyllum), Xaréu (Caranx lugubris) dentre
outras.
Em sua maioria, os peixes capturados, tanto na pesca do
Camurupim quanto na pesca de outras espécies com a utilização de rede de emalhe
(espera), são limpos (desviscerados) no entreposto localizado a poucos metros
da praia, sendo comercializados ainda frescos. O excedente que não é
comercializado, ou é levado pelos pescadores para consumo próprio ou colocado
no gelo à espera de comercialização.
** Os nomes dos pescadores são fictícios
Por
Walter Fontenele | Portalphb
Texto extraído do trabalho monográfico “Caracterização Socioeconômica dos Pescadores
Artesanais da Comunidade da Pedra do Sal, Litoral do Estado do Piauí” de Walter
Fontenele e apresentado a banca da UESPI, em 2021
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