A Canoa de Pesca Artesanal da Pedra do Sal
📷Canoas usadas na pesca artesanal no litoral do Piauí. ((c)) Walter Fontenele |
Os indígenas já utilizavam Canoas antes da chegada dos portugueses e foram estas que deram origem às embarcações dos dias atuais utilizadas na pesca artesanal em muitas comunidades pesqueiras, mundo afora. Com a introdução de novas ferramentas, técnicas e insumos o processo construtivo naval sofreu modificações, possibilitando a confecção de embarcações maiores e mais elaboradas. Estas embarcações – chamadas genericamente de Canoas - são utilizadas em praticamente todo o litoral do Piauí para a pesca no mar, rios e estuários.
As embarcações utilizadas na pescaria artesanal é tema recorrente de pesquisas e estudos antropológicos sobre grupos de populações-tradicionais que trabalham e retiram do ambiente aquático a sua sobrevivência. Mas, essas embarcações trazem em si um significado cultural que às vezes ultrapassa a função de transportar os homens-do-mar aos seus locais de trabalho, sendo peça importante da paisagem de comunidades que se dedicam à pesca de peixes, crustáceos e moluscos. Soma-se a isso a fascinação e o apreço que muitos pescadores têm por suas embarcações, sendo assunto até mesmo nos momentos de lazer e de descanso. Segundo FUNBIO (2018) Canoa é uma,
Embarcação com capacidade para até 3 toneladas, casco de madeira, sem convés ou com convés semifechado, com ou sem casaria, com quilha, movida a vela ou a remo e a vela, tripulação de 1 a 6 pescadores, sem conservação do pescado a bordo ou conservação em pequenas caixas isotérmicas com gelo (FUNBIO, 2018, 13p).
Na Comunidade da Pedra do Sal existe uma única família que é capacitada para a construção e reparo das canoas que são utilizadas para a pesca artesanal. Assim como o ofício da pesca, o conhecimento da carpintaria naval também é passado de pai para filho. O saber-fazer-tradicional da arte da carpintaria é fundamental para que a manutenção sociocultural da pesca artesanal permaneça resistindo ao tempo e as adversidades. Entre uma geração e outra esse conjunto de conhecimentos pode passar por atualizações. Segundo Mascarenhas & Peixoto (2009),
Os controles dos métodos tipologias, materiais empregados, as ancestrais e rigorosas técnicas, as características (medidas e proporções corretas) e a arte de entalhar madeira [...] foram aprendidas, passadas e acumuladas oralmente e sem registros, de ‘pai para filho’ até os mestres da carpintaria de nossos dias (MASCARENHAS; PEIXOTO, 2009, p. 4).
O desenvolvimento de novas técnicas não inviabiliza o conjunto de conhecimentos transmitidos pelos antepassados, muito pelo contrário, pois essas ressignificações serão repassadas para as gerações seguintes. Para Lévi-Strauss (1986),
As mais humildes técnicas dos chamados primitivos fazem apelo a operações manuais e intelectuais de uma grande complexidade que é preciso ser compreendido e aprendido e que, de cada vez que se executam, reclamam inteligência, iniciativa e gosto (LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 383).
Destarte, o pensamento de Lévi-Strauss nos possibilita analisar tanto as atividades quanto o cabedal de conhecimento das populações-tradicionais, levando-se em conta o potencial desses conhecimentos acerca do Meio Ambiente e principalmente da natureza e dos seus vários ciclos. A pesca e todas as outras atividades artesanais que permeiam o mundo e à vida destas populações mantém uma relação de proximidade importante com os ecossistemas, pois, segundo Furtado (1993, p. 206), “[...] é por aí que ele tem acesso objetivo ao conhecimento das relações existentes, as suas atividades e as faunas aquática e terrestre; a flora; os ventos e os mares [...]”.
Ancestralidade da Canoa Artesanal da Pedra do Sal
O modelo de canoa que é utilizada para a atividade da pesca artesanal na Comunidade da Pedra do Sal guarda traços das primeiras embarcações utilizadas pelos povos indígenas e que depois foram atualizadas pelos colonizadores portugueses (LÉRY, 1941). Essas Canoas indígenas são conhecidas como Monóxila e eram construídas utilizando uma casca ou um tronco de uma árvore que era esculpido a fogo. A Canoa artesanal utilizada pelas populações-tradicionais nada mais é que uma evolução natural das antigas Canoas que foram utilizadas pelos povos indígenas para navegação de pequeno alcance. (CÂMARA, 1937).
A existência dessa embarcação milenar em solo brasileiro é comprovada pelo escrivão português, Pero Vaz de Caminha, em sua carta ao Rei de Portugal em meado do ano de 1.500, quando ele fez o registro de indígenas utilizando essas embarcações que ele chamou de almadia (AMADO, 2001). Segundo o historiador pernambucano Evaldo de Mello em sua obra – “Canoas do Recife: um estudo de micro história urbana”, os colonizadores se adaptaram tão bem a Canoa Monóxila que passaram a utiliza-las para sua locomoção. (MELO, 1978).
Em nossa busca pela ancestralidade das Canoas artesanais da Pedra do Sal não encontramos vestígios das antigas monóxilas. Em conversas com pescadores e com moradores mais idosos e ainda vivos nenhum deles conseguiu relembrar de outros tipos de embarcações utilizadas na Comunidade. De acordo com o pescador “Pescada”, que pertence a uma das famílias mais antigas da região,
Eu acredito que minha família é ainda descendente dos índios que viveram aqui bem lá atrás. Meu pai tinha todas as características de índio. Era um moreno bem alto e com o cabelo liso. Sobre essas Canoas feitas queimando o tronco da árvore eu só ouvi falar, mas nunca vi nada nem parecido em toda essa região. Aqui as Canoas sempre foram iguais as de hoje, desde a época do meu bisavô. Sobre os índios sempre ouvi histórias que eles cortavam árvores grandes e com os galhos faziam cabanas para ficar esperando a maré cheia para matar peixes grandes com o arpão. Matavam tubarão, Camurupim e outros peixes grandes, mas isso são apenas histórias, muitas delas de conversa mesmo de pescador (PESCADOR, 2022).
Com o passar do tempo as Canoas da Pedra do Sal foram passando por modificações que as distanciaram das Monóxilas, utilizadas pelos indígenas. Além da técnica utilizada na construção outras inovações foram sendo utilizadas, visando melhorar a produtividade do pescado. As mais significativas foram: tamanho, tipo da madeira, formato, tipos de ferramentas, instalação da vela e o motor de popa. Segundo um de nossos interlocutores,
As Canoas são assim desde que eu me entendo por gente. Fica até difícil para fazer muitas mudanças. Primeiro porque não precisa e depois vai exigir mais trabalho para o “Tantico”. O que vem mudando mesmo é a madeira, mas a madeira é o de menos. Quando tá em falta ou cara demais é só escolher outro tipo. A questão da madeira é assim mesmo, por temporada (PESCADOR, 2020).
Segundo o pescador Cicero, uma das mudanças mais significativa foi o surgimento e à instalação do motor de popa, que é carinhosamente conhecido entre os pescadores como “rabetinha”.
Você não imagina como essa rabetinha nos ajuda. É uma mão na roda, pois tem dias que o mar e o vento não ajudam e ir e vir só no muque é complicado, mesmo pra três ou quatro pessoas. O problema ainda é o preço de uma, mas ela se paga, pois, além de ajudar a aumentar a produção é resistente como o diabo, quase não quebra (PESCADOR, 2020).
A investigação da ancestralidade da Canoa de pesca artesanal nos moldes que ela é na atualidade nos levou ao ano aproximado de 1807, ano de nascimento do bisavô de um dos nossos interlocutores. Contudo, não há dados que possam garantir que antes de 1807 as Canoas já eram construídas, como na atualidade. Por outro lado, não temos evidências cronológicas para assegurar a transição do modelo de Canoas Monóxilas para as Canoas de pesca artesanal construídas e utilizadas hoje, na Pedra do Sal e em boa parte do litoral do Piauí e do Brasil.
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O nosso intuito, especificamente nessa investigação, era chegar a vestígios das Canoas que eram utilizadas pelos povos indígenas - na Comunidade da Pedra do Sal ou em algum dos povoados circunvizinhos. No entanto, o mais próximo que chegamos foi a um exemplar de propriedade do pescador artesanal aposentado, Antônio da Lara, que foi doada ao Museu da Vila, na Praia do Coqueiro, na cidade de Luís Correia. O ano de construção o pescador não soube precisar, mas garantiu que foi obra dos indígenas que habitaram o Estado do Piauí.
As embarcações (Canoas) da pesca artesanal que compõem a frota pesqueira da região da Pedra do Sal possuem basicamente um modelo e podem ser divididas em seis partes:
1. Acento. São os locais reservados ao mestre (acento maior) e aos outros membros da tripulação (acentos menores). O acento localizado no centro da Canoa serve também como sustentáculo para o mastro da vela;
2. Popa. É a parte traseira da Canoa que serve para dar sustentação a todas as outras partes da Canoa, sendo também o local onde é adaptado o moto de popa;
3. Proa. É a parte da frente da canoa;
4. Cavernas. São estruturas de madeira que dão curvatura ao casco;
5. Forro. É o piso da Canoa;
6. Cintado. É uma estrutura que ajuda a dar rigidez a Canoa.
Além das partes principais, toda Canoa para ir ao mar necessita de pelo menos uma dessas outras partes periféricas: o remo/vela, o motor de popa e o mastro.
A vela – que é conhecida na região como pano - é de suma importância na navegabilidade da Canoa, sendo o meio de propulsão preferencial dos pescadores, só sendo desprezada quando a velocidade dos ventos não permite uma navegação rápida. O tecido utilizado para confeccionar a vela deve ser maleável e suficientemente forte para resistir à força dos ventos, sendo geralmente utilizado o Tergal.
O mastro é fabricado com a utilização de vários pedaços de madeiras e vai estreitando da base para o pico. A base precisa ser grosa e robusta o suficiente para sustentar o mastro e a vela sem o perigo de quebrar, mesmo nas piores condições de vento e mar. O pico do mastro precisa também ser resistente, mas com uma diferença fundamental em relação à base, ele precisa ser flexível. As várias partes de madeira que compõem o mastro são amarradas com cordas no meio e com nylon resistente no pico.
Na Pedra do Sal as Canoas são construídas utilizando um mesmo modelo (tipo), variando entre si apenas pelo comprimento (entre 7 e 9 metros), largura (entre 65 e 95cm) e pelo tipo de madeira, tendo o louro cedro (Cedrus), o pau d´arco (Tabebuia serratifolia (Vahl) Nichols Bignoniaceae) e o pequi (Caryocar villosum) como as madeiras preferidas pelos pescadores, devido à durabilidade. No caso específico do pequi ela é usada principalmente para o feitio das cavernas, que são os arcos em forma de “U” que dão sustentação ao casco e a estrutura da canoa. Devido às dimensões das canoas ser reduzidas o projeto de construção não contempla um local específico e refrigerado para o armazenamento do pescado, sendo então a produção acondicionada no fundo da canoa de uma forma que não atrapalhe o trabalho de manejo da pesca. Sem um local próprio para a conservação do pescado, a duração da pescaria fica limitada há poucas horas, o que dificulta o pernoite em alto-mar.
A Pedra do Sal é uma Comunidade que tem no turismo a sua maior fonte de renda e que não conta com estabelecimentos comerciais para suprir as demandas da carpintaria naval. Assim sendo, os insumos mais importantes para construir ou reformar as Canoas são adquiridos em lojas comerciais na cidade de Ilha Grande do Piauí ou em Parnaíba.
A simplicidade das Canoas de pesca artesanal se reflete na construção, assim como nas ferramentas que são utilizadas. Essas ferramentas também sofreram atualizações ao longo dos anos. O enxó, o serrote, o martelo e o arco de pua deram lugar a Serra Circular Fixa, Serra de Curva, Furadeira, Lixadeira, Espátulas, Martelo, Formão, Chaves de Fenda e Plaina.
Por Walter Fontenele | Portalphb
Texto extraído do trabalho monográfico "CARACTERIZAÇÃO
SOCIOECONOMICA DOS PESCADORES ARTESANAIS DA COMUNIDADE DA PEDRA DO SAL, LITORAL
DO ESTADO DO PIAUÍ.
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