O índio capixaba condenado pela Inquisição por ser mandingueiro
Ao nos aventuramos em meio a arquivos e documentos referentes ao período colonial na América portuguesa raramente temos a possibilidade de recuperar a trajetória de indivíduos anônimos que compunham o heterogêneo cotidiano colonial. Quando se trata de indígenas, quase sempre inseridos em posições subalternas na hierarquia social, esta é uma tarefa ainda mais hercúlea. As vidas destes sujeitos, restritas em sua maioria a fragmentos, breves menções ou pequenos registros, ainda são nebulosas em muitos aspectos.
Uma exceção dentro deste conjunto é o índio Miguel Ferreira Pestana, cuja história chegou até nós através da devassa conduzida pelos agentes do Santo Ofício. Natural do aldeamento de Reritiba, no Espírito Santo, Miguel foi preso e julgado pela Inquisição portuguesa sob acusação de feitiçaria, tendo sido surpreendido ao portar uma bolsa de mandinga e, dentro da mesma, uma carta de tocar. Graças aos interrogatórios e testemunhos registrados no processo referente a este indivíduo, é possível não apenas desvendar a relação de Miguel com os mencionados itens, tidos por ele como fontes de diferentes prodígios sobrenaturais, como também mergulhar no dia a dia deste índio. E, de fato, Miguel Pestana teve uma vida emblemática: marcada pelas fugas do aldeamento em que viveu nas duas primeiras décadas do século XVIII, pelas andanças entre o Espírito Santo e o Rio de Janeiro, as quais acabaram o levando até a freguesia de Inhomirim, no Recôncavo da Guanabara, a história de tal personagem se notabiliza acima de tudo pelas variadas relações sociais tecidas por onde passou. Convivendo em ambientes plurais do ponto de vista étnico, cultural e social, Miguel refletia como poucos esta diversidade: seguindo crenças e práticas mágico-religiosas heterogêneas e confundindo-se em meio à população mestiça quando viveu nas freguesias do Recôncavo da Guanabara, ele chegou inclusive a ocupar o posto de capitão do mato em Inhomirim, indicando a ascensão social deste sujeito em um cenário escravista e hierárquico.
Mas quem era, afinal, este sujeito? Durante boa parte de sua vida, a vida de Miguel Ferreira Pestana não foi muito diferente quando comparada com a dos inúmeros indígenas na América portuguesa sujeitos à tutela dos missionários. Nascido e criado em Nossa Senhora da Assunção de Reritiba, célebre missão jesuítica onde o padre José de Anchieta viveu os seus últimos dias , Miguel era parte de uma família estabelecida no aldeamento há algumas gerações no aldeamento localizado na capitania do Espírito Santo. Tanto os seus avós paternos, Miguel Ferreira e Maria da Conceição, quanto os maternos, Adrião de Almeida e Antônia, tinham nascido e vivido no aldeamento. Batizado pelo padre Afonso Pestana e tendo como padrinhos os aldeados Paulo e Maria, Miguel Pestana era filho de Joaquim Ferreira, homem sem ofício, e de Juliana de Almeida, ambos índios e moradores em Reritiba. Isto, aliás, talvez explique o seu sobrenome, já que é possível que ele tenha sido resultante da combinação dos sobrenomes de seu pai e do padre que o batizou, o que não era algo incomum.
Contando cerca de 40 anos quando foi sentenciado no Auto da Fé de 1744, de certo Miguel nasceu nos primeiros anos do século XVIII. O seu cotidiano na aldeia de Nossa Senhora da Assunção provavelmente foi marcado pelo trabalho que realizava sob as ordens dos jesuítas: enquanto lá vivia, Miguel aprendeu e exerceu o ofício de carpinteiro, seguindo um caminho semelhante ao de seu avô paterno, que foi um ferreiro. Em Reritiba, se casou pela primeira vez com Izabel, tendo ficado viúvo algum tempo depois. Apesar de um preso que conviveu com Miguel no aljube do Rio de Janeiro afirmar que o índio lhe confessou ter assassinado a sua primeira esposa, as circunstâncias a respeito da morte de Izabel são desconhecidas. Ainda na aldeia, contraiu o matrimônio pela segunda vez com Ângela Joana Gonçalves, com quem teve filhos.
A relação do índio com os missionários, porém, era delicada. Miguel e sua esposa, Ângela, costumavam fugir com frequência do aldeamento por não quererem obedecer aos inacianos. Isso se devia, em grande parte, a dificuldade que tinham em seguir o modo de vida apregoado pelos padres, de modo que o casal, guiado por um catolicismo construído à luz da realidade indígena no aldeamento e segundo suas próprias experiências cotidianas, não seguia fielmente os ensinamentos dos jesuítas, sendo este um frequente motor de discórdias. Frente à rigidez por vezes empregada pelos padres nas missões, é compreensível que a fuga, mesmo que temporária, tenha surgido como uma possibilidade extrema para aliviar as diversas discordâncias cotidianas. Neste caso, se a rotina por vezes sufocante deveria descontentá-los, há de se dizer também que os castigos apregoados pela pedagogia jesuítica provavelmente despertavam temor suficiente para que Miguel e sua companheira deixassem a aldeia por algum tempo. Insatisfeitos com a vida regrada que os missionários tentavam impor, Miguel e sua esposa iam e vinham entre Reritiba e o seu entorno, abrindo espaço para que mantivessem relações com pessoas de fora e interagissem com crenças ou práticas reprovadas pelos padres. Provavelmente, Miguel e Ângela buscavam fora de Reritiba a liberdade que os superiores da aldeia tanto cerceavam: novas vivências e experiências. Em uma dessas fugas, inclusive, Miguel teve contato com uma carta de tocar, escrito considerado mágico por seus usuários e recorrente na religiosidade popular da América portuguesa, mas condenado pela ortodoxia católica. O superior da aldeia, tendo o surpreendido com a carta, mandou queimá-la, demonstrando a sua reprovação. O relacionamento turbulento só teve um desfecho quando o casal decidiu abandonar de vez o aldeamento e rumar para o Rio de Janeiro, de certo em busca de uma nova vida sem os limites de então.
Após perambular por diversos locais no Rio de Janeiro, Miguel Pestana se estabeleceu com sua esposa no Recôncavo da Guanabara. Localizado nas proximidades do caminho das minas, o Recôncavo era uma região marcada pela produção de gêneros de abastecimento, como mandioca e arroz, e pela ordem escravista. Para um índio egresso de um aldeamento como Miguel Pestana tratava-se de fato de um cenário bem diferente do que estava acostumado. Se por um lado ele se distanciou da vida regrada e por vezes rigorosa que os missionários tentavam impor nas reduções, passando a conviver diretamente com práticas, idéias e hábitos outrora proibidos, por outro ele perdeu a principal garantia que possuía ante a escravidão ou a formas análogas: o status de índio aldeado. Contudo, um elemento favoreceu a sua adaptação ao novo ambiente. O fato de dominar o ofício de carpinteiro, aprendido enquanto viveu sob a tutela dos jesuítas no Espírito Santo, foi fundamental para que Miguel encontrasse um lugar na realidade social que ele encontrou no Recôncavo da Guanabara. Isso porque ele se diferenciava de boa parte da massa de indivíduos despossuídos, subalternos socialmente e de cor por exercer um trabalho especializado. Em uma sociedade hierárquica e escravista como a que existia na América portuguesa, este era um importante fator de distinção social, uma vez que lhe dava acesso a serviços com melhores remunerações e permitia escolher ofertas de trabalho mais convenientes.
Sem dispor de uma residência fixa, Miguel transitava pela região do Recôncavo, abrigando-se nas propriedades de colonos para quem prestava serviços. Vivendo nas senzalas das fazendas, o índio mantinha contato direto com escravos que viviam nestas localidades. A estreita convivência de Pestana com os cativos e com o mundo da escravidão de certo contribuiu para outra profissão exercida pelo mesmo no Recôncavo da Guanabara: a de capitão do mato, na freguesia de Inhomirim. Mantendo-se atento a eventuais fugas ou revoltas nas senzalas onde vivia, Pestana deve ter adquirido experiência junto aos escravos e angariado a confiança dos proprietários locais, fatores essenciais para que ocupasse o posto de capitão do mato. Sempre em alerta quanto a alternativas que poderiam melhorar a sua vida, o índio de certo percebeu com o tempo outras possibilidades de obter vantagens através dos conhecimentos adquiridos no dia a dia. E alcançar o posto de capitão do mato foi, sem dúvida, um sinal de sua ascensão social. Trabalhando em prol da freguesia de Inhomirim, Miguel Pestana atuava em beneficio dos senhores, representando diretamente os seus interesses. Em uma sociedade marcada pela ordem escravista, capitães como ele desempenhavam um papel essencial na defesa da mesma, o que acabava por ser um importante elemento de distinção social. Tal posição possibilitava a índios, negros e mestiços, parcela considerável dos indivíduos que ocupavam o posto de capitão do mato, não apenas maior aproximação com os senhores, como também um distanciamento em relação à escravidão e aos grupos subalternos da hierarquia colonial.
Os contatos com os africanos, porém, não se limitaram às senzalas ou à perseguição de escravos fugitivos. Em dada oportunidade, quando capturou um escravo foragido no caminho das minas, Miguel encontrou junto ao negro um bolsa supostamente mágica, capaz de proteger quem a utilizava. Foi o primeiro contato do índio com a mandinga, que tornou-se essencial em sua vida a partir de então. Crente nos poderes do objeto, que associava elementos referentes à religiosidade africana e ao cristianismo, o índio tornou-se um adepto tenaz da mandinga, a ponto de ensiná-la a negros com quem convivia nas senzalas e de vender bolsas a interessados em adquirir os poderes vinculados a ela. Não demorou muito para que ele se tornasse um afamado mandingueiro. Quando consideramos a trajetória de Miguel Pestana, poucos elementos expressam tão bem a pluralidade das relações sociais estabelecidas por ele e os intercâmbios culturais vivenciados por este índio quanto a bolsa de mandinga. Este objeto, que ele passou a carregar nos tempos em que viveu no Recôncavo da Guanabara, se tornou uma espécie de catalisador das múltiplas e heterogêneas influências culturais experimentadas pelo mesmo ao longo da vida. Peça-chave na forma como este indivíduo via o mundo e interpretava a realidade, a bolsa de mandinga funcionava para Miguel Pestana não apenas como um amuleto de proteção, mas também como fonte de diferentes prodígios. Segundo declarou aos inquisidores, Miguel acreditava que a bolsa lhe conferia defesa contra perigos, incluindo facadas e tiros, valentia, sorte e até mesmo poder de sedução sobre mulheres. Combinando elementos pertinentes à simbologia cristã, crenças diversas com as quais dialogou e componentes materiais ressignificados em torno de um artefato culturalmente híbrido, mas com uma evidente origem africana, a bolsa de mandinga, eivada por uma série de heterodoxias do ponto de vista católico, parecia ser acima de tudo uma resposta para os anseios e para as dificuldades com as quais este indivíduo lidava no cotidiano colonial.
Contudo, a grande reviravolta na trajetória deste sujeito ocorre no ano de 1737, quando ele foi preso durante uma visitação episcopal realizada na freguesia de Inhomirim, onde então morava. Denunciado por fazer uso de bolsas de mandinga, item que ele acreditava lhe proteger de ataques de facas e armas de fogo, Miguel tornou-se alvo ação inquisitorial. Inicialmente levado ao aljube do Rio de Janeiro, o índio aguardou por cerca de cinco anos na dita prisão até ser remetido aos cárceres secretos do Santo Ofício, em Lisboa. Neste meio tempo, os testemunhos que constam em seu processo inquisitorial são unânimes em afirmar que Miguel, mesmo preso, vendia bolsas de mandinga, pós supostamente mágicos e cartas de tocar aos que iam procurá-lo, o que incluía negros, mulatos, assim como mulheres brancas, que lhe davam dinheiro e prendas de ouro por seus serviços. Apesar de inusitado, tal fato não deixa de ser interessante ao denotar a relevância e a circularidade de crenças referentes à religiosidade popular colonial, além de denotar para a fama que Pestana provavelmente possuía como mandingueiro.
Quando finalmente deixou a prisão do aljube, o índio não teve muito o que comemorar. Até chegar a Lisboa e ser encaminhado aos cárceres secretos da Inquisição, Miguel Pestana provavelmente passou por maus momentos nos dois ou três meses do ano de 1743 que esteve a bordo da nau São Lourenço, cujo capitão era Ventura Lopes. De certo, ao deixar o Rio de Janeiro e rumar em direção ao Velho Mundo, esta foi a primeira vez que nosso personagem experimentou a travessia marítima que séculos atrás havia possibilitado ao Santo Ofício estender os seus tentáculos até a América. Já em Lisboa, Miguel Pestana seria julgado e sentenciado às galés pela Inquisição em 1744, tornando-se um dos poucos indígenas provenientes da América portuguesa a ser condenado pelo Santo Ofício.
Por Medium.com
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